Pular para o conteúdo principal

Francisco avança, mas 'autorização' para batismo de pessoas trans não é inclusivo

Pesquisadores da USP e da Unicamp avaliam o ato como um pequeno passo em direção à inclusão do público LGBTQIAP+ pela Igreja Católica, ainda acompanhado de um descaso com essa população


Camilly Rosaboni
jornalista

Jornal da USP

O escritório doutrinário do Vaticano decidiu no dia 8 de novembro de 2023 que a Igreja Católica deve permitir o batismo de pessoas transgênero.

Segundo a decisão, pessoas trans também podem apadrinhar indivíduos em batismos católicos romanos, além de serem testemunhas em casamentos religiosos. Para especialistas da USP e da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), a resposta da Santa Sé não é suficiente para a inclusão de pessoas trans nos espaços religiosos.

A decisão decorre de uma série de questionamentos do bispo brasileiro José Negri, da Diocese de Santo Amaro, em relação ao tema. A resposta foi respaldada pelo documento do departamento Dicastério para a Doutrina da Fé, aprovado pelo papa Francisco e assinado no dia 31 de outubro por Victor Manuel Fernandéz, prefeito do mais antigo dos dezesseis dicastérios da Cúria Romana.

Para Gabrielle Weber, professora da Escola de Engenharia de Lorena (EEL) da USP e coordenadora do projeto Corpas Trans, a declaração do Vaticano é uma maneira de se omitir da exclusão desse público da Igreja Católica.

“As declarações atuais são um jeito do Vaticano ter uma mea culpa, mas sem se comprometer”, afirma. “Eu não vejo nenhum compromisso real de mudança”, complementa.

Gabrielle desistiu de acompanhar doutrinas religiosas quando percebeu que jamais seria aceita como mulher trans nesses espaços.

“As pessoas trans, muitas vezes, não conseguem estar na igreja. Não porque elas não querem, mas porque elas não têm abertura. Muitas pessoas trans estão na igreja, mas muitas outras poderiam estar se elas tivessem esse espaço”, afirma Jeferson Batista, pesquisador em Antropologia Social na Unicamp e especialista em ativismo católico LGBTQIAP+ brasileiro.

Resposta do Vaticano

A seguir, algumas das disposições presentes no documento, transcritas em tradução livre. 

— Em relação ao batismo: pessoas trans, que passaram por tratamento hormonal ou cirurgia de mudança de sexo, podem receber o batismo, desde que não se gere escândalos ou desorientação entre os fiéis;

—  Em relação ao apadrinhamento em casamentos religiosos: pessoas trans adultas podem ser padrinhos ou madrinhas, desde que não haja risco de escândalo, legitimação indevida ou desorientação no campo educativo da comunidade eclesial;

—  Sobre ser testemunha em casamento religioso: não há proibição de pessoas trans testemunharem em casamentos segundo a legislação canônica universal;

—  Sobre batizar crianças que tenham pais homoafetivos, sendo elas adotadas ou obtidas por outros métodos, como útero de aluguel: elas estão autorizadas a serem batizadas desde que sejam educadas na religião católica.

O documento, porém, não obriga as igrejas católicas a seguirem essas postulações, dependendo de cada padre e bispo aceitar em sua comunidade. 

“O batismo não pode ser negado, pois não existe uma condição que o limite para pessoas LGBT+, sejam elas de qualquer letra da sigla. Mas é possível encontrar pessoas dessa comunidade que tiveram esse direito negado”, diz Batista.

O pesquisador da Unicamp acredita que a condição de acesso ao batismo, que diz “se não houver situações em que haja risco de gerar escândalo público ou desorientação entre os fiéis”, atrapalha o entendimento, pois não esclarece o que pode ser considerado um escândalo. 

“Você já perpassa, nessa narrativa, uma transfobia velada de que travesti é bagunça e que estão lá para causar”, afirma Gabrielle.

Papa não consegue agradar
a ala progressista da Igreja
nem a conservadora

Diálogo horizontal com ruídos

Para Batista, a fala do Vaticano está inserida em um contexto de abertura religiosa. Nos primeiros cinco meses de seu papado, Francisco afirmou: “Se uma pessoa é gay e busca a Deus, quem sou eu para julgá-la?”. 

A fala foi feita durante uma coletiva de imprensa após o encerramento da Jornada Mundial da Juventude (JMJ), em 2013. “Então, nesse momento, inaugurou-se na Igreja Católica a possibilidade de um diálogo mais horizontal e mais honesto entre a população católica LGBTQIAP+ e a igreja institucional”, observa Batista.

De acordo com Batista, a diferença entre esses movimentos e o documento assinado em novembro está no caráter oficial que o segundo possui. 

“Um documento oficial da Doutrina da Fé dizendo que pessoas trans podem participar desses sacramentos é uma novidade, ainda mais por ser uma igreja milenar que funciona a partir de documentos”, afirma.

Apesar dos avanços, a Igreja Católica manteve atitudes que dialogam com o preconceito à comunidade LGBTQIAP+. Em 2021, o Vaticano se opôs a um projeto de lei cuja meta seria combater a homofobia na Itália, defendendo que restringiria as liberdades de expressão e religiosa. 

“Sujeitar a um processo penal, por exemplo, quem acredita que a família exige um pai e uma mãe, e não a duplicação da mesma figura, equivaleria a instaurar um crime de opinião. Isso limitaria, de fato, a liberdade pessoal, as escolhas educacionais, o modo de pensar e de ser, o exercício da crítica e da dissidência”, afirmou a Conferência Episcopal Italiana (CEI), dos bispos que representam a Igreja Católica na Itália.

Em outubro deste ano, o Vaticano criticou a Igreja Alemã e o Caminho Sinoidal – uma série de conferências que pedem a revisão dos ensinamentos sobre ética sexual, acolhimento de pessoas trans e intersexuais e bençãos a casais do mesmo sexo. Por meio de uma carta do Cardeal Pietro Parolin, secretário de Estado do Vaticano, o centro da Igreja Católica negou qualquer mudança sobre os ensinamentos em relação à homossexualidade.

No Brasil

Batista explica que a fala do Vaticano está atrelada a uma demanda por informação na base da Igreja Católica. “Paróquias e dioceses estão sendo demandadas por pessoas LGBTQIAP+, não só homens gays, mas mulheres lésbicas e pessoas trans que chegam à igreja reivindicando uma cidadania religiosa.”

Essa cidadania também se relaciona ao batismo, por ele significar o ingresso na comunidade católica. Porém, para pessoas trans, a situação pode ser mais complexa, uma vez que a mudança para o nome social e a transição da pessoa podem não ter sido feitas no momento do batismo.

“Em geral, no contexto católico, o batismo se dá logo após o nascimento. Então, quando você fala em batizar pessoas trans, muitas vezes, elas já foram batizadas a contragosto”, ressalta Gabrielle.

A declaração do Vaticano não aborda o casamento entre pessoas da comunidade LGBTQIAP+. No entanto, a Igreja Católica avalia a possibilidade de conceder a bênção à união desses casais. 

“Há pessoas [dessa população] que prezam por esse diálogo institucional e o reconhecimento do matrimônio”, afirma Batista, ressaltando que não vê perspectiva da Igreja Católica estender o casamento religioso para o grupo. 

• Arcebispo teme que após casamento gay haja poligamia

• Católicos dos EUA negam adoção de crianças por casais gays

Comentários

Paulo Lopes disse…
Não consigo entender a insistência de pessoa de ficar em uma igreja que não a quer.

Post mais lidos nos últimos 7 dias

90 trechos da Bíblia que são exemplos de ódio e atrocidade

Roger tenta anular 1ª união para se casar com Larissa Sacco

Médico é acusado de ter estuprado pacientes Roger Abdelmassih (foto), 66, médico que está preso sob a acusação de ter estuprado 56 pacientes, solicitou à Justiça autorização  para comparecer ao Tribunal Eclesiástico da Arquidiocese de São Paulo de modo a apresentar pedido de anulação religiosa do seu primeiro casamento. Sônia, a sua segunda mulher, morreu de câncer em agosto de 2008. Antes dessa união de 40 anos, Abdelmassih já tinha sido casado no cartório e no religioso com mulher cujo nome ele nunca menciona. Esse casamento durou pouco. Agora, o médico quer anular o primeiro casamento  para que possa se casar na Igreja Católica com a sua noiva Larissa Maria Sacco (foto abaixo), procuradora afastada do Ministério Público Federal. Médico acusado de estupro vai se casar com procuradora de Justiça 28 de janeiro de 2010 Pelo Tribunal Eclesiástico, é possível anular um casamento, mas a tramitação do processo leva anos. A juíza Kenarik Boujikian Felippe,  da 16ª

Veja 14 proibições das Testemunhas de Jeová a seus seguidores

Seleção de vôlei sequestrou palco olímpico para expor crença cristã

Título original: Oração da vitória por Daniel Sottomaior (foto) para Folha de S.Paulo Um hipotético sujeito poderoso o suficiente para fraudar uma competição olímpica merece ser enaltecido publicamente? A se julgar pela ostensiva prece de agradecimento da seleção brasileira de vôlei pela medalha de ouro nas Olimpíadas, a resposta é um entusiástico sim! Sagrado é o direito de se crer em qualquer mitologia e dá-la como verdadeira. Professar uma religião em público também não é crime nenhum, embora costume ser desagradável para quem está em volta. Os problemas começam quando a prática religiosa se torna coercitiva, como é a tradição das religiões abraâmicas. Os membros da seleção de vôlei poderiam ter realizado seus rituais em local mais apropriado. É de se imaginar que uma entidade infinita e onibenevolente não se importaria em esperar 15 minutos até que o time saísse da quadra. Mas uma crescente parcela dos cristãos brasileiros não se contenta com a prática privada: para

Estudante expulsa acusa escola adventista de homofobia

Arianne disse ter pedido outra com chance, mas a escola negou com atualização Arianne Pacheco Rodrigues (foto), 19, está acusando o Instituto Adventista Brasil Central — uma escola interna em Planalmira (GO) — de tê-la expulsada em novembro de 2010 por motivo homofóbico. Marilda Pacheco, a mãe da estudante, está processando a escola com o pedido de indenização de R$ 50 mil por danos morais. A primeira audiência na Justiça ocorreu na semana passada. A jovem contou que a punição foi decidida por uma comissão disciplinar que analisou a troca de cartas entre ela e outra garota, sua namorada na época. Na ata da reunião da comissão consta que a causa da expulsão das duas alunas foi “postura homossexual reincidente”. O pastor  Weslei Zukowski (na foto abaixo), diretor da escola, negou ter havido homofobia e disse que a expulsão ocorreu em consequência de “intimidade sexual” (contato físico), o que, disse, é expressamente proibido pelo regulamento do estabelecimento. Consel

Com 44% de ateus, Holanda usa igrejas como livrarias e cafés

Livraria Selexyz, em Maastricht Café Olivier, em Utrecht As igrejas e templos da Holanda estão cada vez mais vazios e as ordens religiosas não têm recursos para mantê-los. Por isso esses edifícios estão sendo utilizados por livrarias, cafés, salão de cabeleireiro, pistas de dança, restaurantes, casas de show e por aí vai. De acordo com pesquisa de 2007, a mais recente, os ateus compõem 44% da população holandesa; os católicos, 28%; os protestantes, 19%; os muçulmanos, 5%, e os fiéis das demais religiões, 4%. A maioria da população ainda acredita em alguma crença, mas, como ocorre em outros países, nem todos são assíduos frequentadores de celebrações e cultos religiosos. Algumas adaptações de igrejas têm sido elogiadas, como a de Maastricht, onde hoje funciona a livraria Selexyz (primeira foto acima). A arquitetura realmente impressiona. O Café Olivier (a segunda foto), em Utrecht, também ficou bonito e agradável. Ao fundo, em um mezanino, se destaca o órgão da antiga ig

Cristianismo é a religião que mais perseguiu o conhecimento científico

Cristãos foram os inventores da queima de livros LUÍS CARLOS BALREIRA / opinião As epidemias e pandemias durante milhares de anos antes do cristianismo tiveram as mais estapafúrdias explicações dos deuses. Algumas mentes brilhantes da antiguidade, tais como Imhotep (2686-2613 a.C.) e Hipócrates (460-377 a.C.) tentaram passar explicações científicas para as massas de fanáticos religiosos, ignorantes, bestas humanas. Com a chegada ao mundo das feras cristãs, mergulhamos numa era de 2000 anos de trevas e ignorância. Os cristãos foram os inventores da queima de livros e bibliotecas. O cristianismo foi a religião que mais perseguiu o conhecimento científico e os cientistas. O Serapeu foi destruído em 342 d.C. por ordem de um bispo cristão de Alexandria, sob a proteção de Teodósio I.  Morte de Hipatia de Alexandrina em ilustração de um livro do século 19 A grande cientista Hipátia de Alexandria (351/370) foi despida em praça pública e dilacerada viva pelas feras e bestas imundas cristãs. So

Pseudoterapias, estresse e câncer: uma combinação perigosa, fuja disso

Evangélicos quebram imagens de umbanda no Rio

por Denise Menchen , da Folha Quatro integrantes da igreja evangélica Nova Geração de Jesus Cristo foram presos, acusados de invadir ontem à noite um centro de umbanda no Catete, zona sul do Rio de Janeiro, e quebrar cerca de 30 imagens religiosas, prateleiras e um ventilador (foto). O caso foi registrado na 9ª DP (Catete). Segundo uma das dirigentes do Centro Espírita Cruz de Oxalá, a advogada Cristina Maria Costa Moreira, 45, cerca de 50 pessoas aguardavam em fila a abertura do atendimento ao público, às 19h, quando Alessandro Brás Cabral dos Santos, Afonso Henrique Alves Lobato, Raimundo Nonato e uma jovem identificada apenas como Dominique chegaram ao local. De acordo com Moreira, eles ofenderam os presentes e forçaram a entrada na casa. "Eles chegaram dizendo que queriam ver onde estava o demônio e foram direto para o terreiro", conta Celso Quadros, 52, outro dirigente do centro espírita. "Quebraram tudo, inclusive imagens que temos há 40 anos". A a

Cai mais uma lei anti-blasfêmia, agora na cidade paulista de Sorocaba