Pular para o conteúdo principal

Canibalismo mostrado em filme faz parte da história evolutiva dos humanos

Filme causa impacto ao mostrar a história real de vítimas de acidente de avião que sobreviveram comendo os corpos dos mortos. Hominídeos conheciam muito bem o sabor dessa carne


José Luis Guil Guerrero
professor de Tecnologia Alimentar na Universidade de Almería, Espanha

The Conversation
plataforma de informação e análise produzida por acadêmicos e jornalistas

"A Sociedade da Neve" é um filme de 2023 em que o diretor de cinema Juan Antonio Bayona reconta com maestria um episódio recente de canibalismo.

A verdadeira história de um grupo de uruguaios que, após sofrer um acidente de avião nos Andes, foram obrigados a se alimentar dos cadáveres de seus companheiros. Mas no fundo gelado do filme há uma questão perturbadora que nos confronta: quando, em que momento, comeríamos carne humana.

Nós, hominídeos, fizemos isso ao longo de nossa história evolutiva e, possivelmente, fizemos isso por necessidade.

Canibalismo, uma constante na evolução humana

Há cerca de 1,45 milhão de anos, no Quênia, alguns antigos parentes nossos comeram um dos seus, de acordo com marcas de corte numa tíbia, fornecendo a prova mais antiga e decisiva de que os nossos antepassados ​​massacraram e comiam uns aos outros. Mas a prova sobre o canibalismo pode vir de outro hominídeo mais antigo que viveu na África do Sul, durante o período Plio-Pleistoceno (entre 2,5 e 1,5 milhões de anos atrás), cuja mandíbula direita apresenta marcas de cortes infligidos por uma ferramenta cortante de pedra.

Seguindo esta inércia, parece que todos os hominídeos eram canibais, desde o Homo antecessor de Atapuerca e dos Neandertais até às diferentes sociedades do Homo sapiens. Por exemplo, foram encontradas evidências de que os aborígenes que Colombo contatou na América eram canibais. Em outras áreas geográficas, incluindo certas ilhas do Pacífico, o canibalismo foi praticado até tempos recentes.

Quando éramos principalmente caçadores, precisávamos de muita gordura

A capacidade da nossa espécie — e de outros parentes anteriores — de se adaptar a qualquer tipo de habitat influenciou decisivamente a sua dieta. Nas regiões árticas e circumpolares, especialmente durante os períodos glaciais, a proporção de alimentos de origem animal ingeridos era superior à das regiões mais quentes, e a principal fonte de energia teria sido a gordura animal. Pelo contrário, nas regiões mais a sul, os alimentos vegetais, ricos em hidratos de carbono, seriam mais comuns.

É claro que a dependência da gordura sempre existiu, entre outros motivos pela necessidade de consumir ácidos graxos ômega-3 e ômega-6, essenciais para os hominídeos, essenciais para o bom funcionamento do cérebro. Na verdade, a deficiência de ômega-3 leva ao aparecimento de várias doenças deficientes.

Cavalos e elefantes têm mais ômega-3 do que renas

Mamíferos de estômago simples (hominídeos, cavalos, ursos, elefantes e mamutes) possuem gordura subcutânea rica em ômega-3. Pelo contrário, animais com sistema digestivo complexo ou ruminantes (cabras, renas, veados e bisões) apresentam sempre uma gordura corporal muito mais pobre nestes ácidos gordos.

Daí resulta que o estado nutricional dos nossos antepassados ​​dependia em grande parte da escolha das suas presas. Sabemos que os hominídeos da Idade da Pedra, em períodos mais ou menos frequentes, dependiam estreitamente de algumas espécies de animais para a subsistência e tinham pouco espaço para escolher.



O que aconteceu quando as presas ricas em ômega-3 eram escassas? A resposta é clara: outras fontes vegetais de ômega-3, como sementes de linhaça, nozes e recursos similares, poderiam ter fornecido a gordura animal. Contudo, na Eurásia, durante os longos invernos glaciais, os recursos vegetais também eram escassos. 

Isto teria feito com que as doenças crônicas por deficiência de ômega 3 se manifestassem com mais frequência, pelo que, a longo prazo, o sucesso evolutivo do grupo dos hominídeos teria sido comprometido.

Poderia haver uma relação entre deficiência de ômega-3 e canibalismo?

Por todas as razões até agora explicadas, na Eurásia, durante a Idade da Pedra, os alimentos de origem animal ocuparam um lugar preferencial, especialmente durante os períodos glaciais. 

Dada a escassez de hidratos de carbono, as necessidades energéticas teriam sido cobertas pelo consumo principalmente de gordura, obtida principalmente de animais caçados. 

Supunha-se que essa gordura fornecia simultaneamente "energia limpa" e ômega 3 e ômega 6. No entanto, em muitos períodos pré-históricos, os hominídeos dependiam de animais ruminantes, como as renas, cuja gordura é pobre em ômega-3.

Em circunstâncias tão extremas, a alimentação entre os hominídeos poderia ter-nos ajudado a suplementar a quantidade de ômega-3 necessária para manter a saúde.

Sem ir mais longe, há cerca de 40 mil anos, os neandertais e os homens modernos poderiam ter caçado e comido uns aos outros. Ou a qualquer momento, hominídeos da mesma espécie poderiam ter se devorado uns aos outros. 

Como os animais já forneciam bastante carne, provavelmente o nutriente preferido na mesa dos canibais teria sido a gordura, rica em energia, além de vísceras. É fácil supor que uma iguaria muito apreciada nestas circunstâncias teria sido o cérebro hominídeo que, dado o seu grande tamanho, teria fornecido elevadas proporções de DHA , um tipo de ácido graxo ômega-3 essencial para a prevenção de uma infinidade de doenças, doenças degenerativas.

O problema é que, se ao comermos uns aos outros tivéssemos utilizado preferencialmente as vísceras e a gordura corporal, as marcas de corte que aparecem nos ossos quando a carne é extraída teriam sido menos frequentes. Portanto, é possível que a real incidência do canibalismo na pré-história estivesse sendo subestimada.

O comportamento canibal teria sido evolutivamente favorável

Poderia a situação descrita acima para a Eurásia na Idade da Pedra ser extrapolada para outros ambientes pré-históricos onde teriam existido fontes mais abundantes de ômega-3? Sim. Embora as zonas do sul ofereçam uma maior diversidade de fontes de ômega-3, os alimentos ricos nesses ácidos, como o peixe ou os frutos secos, nem sempre estariam disponíveis em quantidades adequadas. Além disso, o corpo humano como recurso alimentar nunca teria perdido a sua atratividade, tanto pela qualidade nutricional descrita como pela sua facilidade de obtenção.

Dessa forma, o comportamento canibal sempre teria sido evolutivamente favorável à sobrevivência dos hominídeos. Isso não implica que sejamos uma espécie violenta e agressiva: pelo contrário, seríamos “condicionalmente violentos”. Ou seja, estaríamos adaptados para modificar nosso comportamento dependendo dos recursos disponíveis.

Da próxima vez que for a um supermercado e observar a variedade de alimentos disponíveis, incluindo os ricos em ômega 3, como o peixe, as nozes ou o óleo de linhaça, reflita durante alguns minutos sobre a longa história de privação e escassez de recursos dos nossos antepassados.

• Biólogo americano explica em vídeo por que todos somos peixes

• O que separa os humanos dos animais? Muita coisa, mas muito pouco

Comentários

Post mais lidos nos últimos 7 dias

90 trechos da Bíblia que são exemplos de ódio e atrocidade

Roger tenta anular 1ª união para se casar com Larissa Sacco

Médico é acusado de ter estuprado pacientes Roger Abdelmassih (foto), 66, médico que está preso sob a acusação de ter estuprado 56 pacientes, solicitou à Justiça autorização  para comparecer ao Tribunal Eclesiástico da Arquidiocese de São Paulo de modo a apresentar pedido de anulação religiosa do seu primeiro casamento. Sônia, a sua segunda mulher, morreu de câncer em agosto de 2008. Antes dessa união de 40 anos, Abdelmassih já tinha sido casado no cartório e no religioso com mulher cujo nome ele nunca menciona. Esse casamento durou pouco. Agora, o médico quer anular o primeiro casamento  para que possa se casar na Igreja Católica com a sua noiva Larissa Maria Sacco (foto abaixo), procuradora afastada do Ministério Público Federal. Médico acusado de estupro vai se casar com procuradora de Justiça 28 de janeiro de 2010 Pelo Tribunal Eclesiástico, é possível anular um casamento, mas a tramitação do processo leva anos. A juíza Kenarik Boujikian Felippe,  da 16ª

Veja 14 proibições das Testemunhas de Jeová a seus seguidores

Estudante expulsa acusa escola adventista de homofobia

Arianne disse ter pedido outra com chance, mas a escola negou com atualização Arianne Pacheco Rodrigues (foto), 19, está acusando o Instituto Adventista Brasil Central — uma escola interna em Planalmira (GO) — de tê-la expulsada em novembro de 2010 por motivo homofóbico. Marilda Pacheco, a mãe da estudante, está processando a escola com o pedido de indenização de R$ 50 mil por danos morais. A primeira audiência na Justiça ocorreu na semana passada. A jovem contou que a punição foi decidida por uma comissão disciplinar que analisou a troca de cartas entre ela e outra garota, sua namorada na época. Na ata da reunião da comissão consta que a causa da expulsão das duas alunas foi “postura homossexual reincidente”. O pastor  Weslei Zukowski (na foto abaixo), diretor da escola, negou ter havido homofobia e disse que a expulsão ocorreu em consequência de “intimidade sexual” (contato físico), o que, disse, é expressamente proibido pelo regulamento do estabelecimento. Consel

Seleção de vôlei sequestrou palco olímpico para expor crença cristã

Título original: Oração da vitória por Daniel Sottomaior (foto) para Folha de S.Paulo Um hipotético sujeito poderoso o suficiente para fraudar uma competição olímpica merece ser enaltecido publicamente? A se julgar pela ostensiva prece de agradecimento da seleção brasileira de vôlei pela medalha de ouro nas Olimpíadas, a resposta é um entusiástico sim! Sagrado é o direito de se crer em qualquer mitologia e dá-la como verdadeira. Professar uma religião em público também não é crime nenhum, embora costume ser desagradável para quem está em volta. Os problemas começam quando a prática religiosa se torna coercitiva, como é a tradição das religiões abraâmicas. Os membros da seleção de vôlei poderiam ter realizado seus rituais em local mais apropriado. É de se imaginar que uma entidade infinita e onibenevolente não se importaria em esperar 15 minutos até que o time saísse da quadra. Mas uma crescente parcela dos cristãos brasileiros não se contenta com a prática privada: para

Com 44% de ateus, Holanda usa igrejas como livrarias e cafés

Livraria Selexyz, em Maastricht Café Olivier, em Utrecht As igrejas e templos da Holanda estão cada vez mais vazios e as ordens religiosas não têm recursos para mantê-los. Por isso esses edifícios estão sendo utilizados por livrarias, cafés, salão de cabeleireiro, pistas de dança, restaurantes, casas de show e por aí vai. De acordo com pesquisa de 2007, a mais recente, os ateus compõem 44% da população holandesa; os católicos, 28%; os protestantes, 19%; os muçulmanos, 5%, e os fiéis das demais religiões, 4%. A maioria da população ainda acredita em alguma crença, mas, como ocorre em outros países, nem todos são assíduos frequentadores de celebrações e cultos religiosos. Algumas adaptações de igrejas têm sido elogiadas, como a de Maastricht, onde hoje funciona a livraria Selexyz (primeira foto acima). A arquitetura realmente impressiona. O Café Olivier (a segunda foto), em Utrecht, também ficou bonito e agradável. Ao fundo, em um mezanino, se destaca o órgão da antiga ig

Cristianismo é a religião que mais perseguiu o conhecimento científico

Cristãos foram os inventores da queima de livros LUÍS CARLOS BALREIRA / opinião As epidemias e pandemias durante milhares de anos antes do cristianismo tiveram as mais estapafúrdias explicações dos deuses. Algumas mentes brilhantes da antiguidade, tais como Imhotep (2686-2613 a.C.) e Hipócrates (460-377 a.C.) tentaram passar explicações científicas para as massas de fanáticos religiosos, ignorantes, bestas humanas. Com a chegada ao mundo das feras cristãs, mergulhamos numa era de 2000 anos de trevas e ignorância. Os cristãos foram os inventores da queima de livros e bibliotecas. O cristianismo foi a religião que mais perseguiu o conhecimento científico e os cientistas. O Serapeu foi destruído em 342 d.C. por ordem de um bispo cristão de Alexandria, sob a proteção de Teodósio I.  Morte de Hipatia de Alexandrina em ilustração de um livro do século 19 A grande cientista Hipátia de Alexandria (351/370) foi despida em praça pública e dilacerada viva pelas feras e bestas imundas cristãs. So

Malafaia diz que Feliciano é vítima do PT, gays e ateus

Para pastor Malafaia,  há um  complô  contra seu colega Silas Malafaia (foto) afirmou que são os petistas, gays e ateus que estão movendo uma campanha de descrédito contra o pastor e deputado Marco Feliciano (PSC-SP). Em uma nota de alerta aos pastores para que não assinem uma carta pedindo o afastamento de Feliciano da presidência da Comissão dos Direitos Humanos e Minorias, Malafaia disse estar em jogo, nesse caso, o interesse dos petistas que querem desviar a atenção da opinião pública para a posse de dois de seus integrantes condenados pelo crime do mensalão em uma das mais importantes comissões da Câmara. Trata-se dos deputados José Genoíno e João Paulo Cunha, que agora fazem parte da Comissão de Constituição e Justiça. “Eles [os petistas] precisavam desviar da sociedade o foco deste fato”, afirmou Malafaia. Outro motivo, segundo ele, é que Feliciano é “um ferrenho opositor dos privilégios” defendidos pelos ativistas gays, além de combater, por exemplo, a legaliza

Drauzio Varella afirma por que ateus despertam a ira de religiosos

Xuxa pede mobilização contra o 'monstro' Marco Feliciano

Pela primeira vez a apresentadora se envolve em uma polêmica A apresentadora da Rede Globo Xuxa (foto) afirmou em sua página no Facebook que o pastor e deputado Marco Feliciano (PSC-SP), o novo presidente da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara, não é “um religioso, é um monstro”. Sem citar o nome de Feliciano, ela ficou indignada ao ler que “esse deputado disse que negros, aidéticos e homossexuais não têm alma”. “Vamos fazer alguma coisa! Em nome de Deus, ele não pode ter poder.” É a primeira vez que Xuxa pede mobilização de seus fãs em uma questão polêmica. Amiga do padre Marcelo Rossi, ela é católica praticante. No Facebook, em seu desabafo, escreveu sete vezes a palavra "Deus" e argumentou que todos sabem que ela respeita todas as religiões. A apresentadora também se mostrou abalada ao saber que Feliciano, durante uma pregação, pediu a senha do cartão bancário de um fiel. “O que é isso, meu povo?” “Essa pessoa não pode ser presidente da C