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Figueiras da Mata Atlântica resistem a séculos de destruição e se firmam como legado cultural

Carregada de simbolismos desde o Egito Antigo, há 3.000 anos antes do cristianismo, o Ficus sycomorus estabelece uma ponte entre o mundo vegetal e o dos humanos


Vicente Leal E. Fernandez

geógrafo, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio)

Thomaz de La Rocque Amadeo
geógrafo, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio)

The Conversation
plataforma de informação e análise produzida por acadêmicos e jornalistas

O culto às árvores está presente nas mais variadas religiões e linhas espirituais do mundo todo desde tempos imemoriais. Por mais que não recebam o mesmo significado, as árvores estão muitas vezes vinculadas a alguma conotação sagrada, podendo ser percebidas como um arquétipo universal.

De maneira ampla, muitas vezes as árvores são representações da capacidade infinita de regeneração do cosmos. Tal crença está presente no mito da Yggdrasil (mitologia alemã), das Árvores da Vida (Mesopotâmia), da Imortalidade (Ásia, Antigo Testamento), da Sabedoria (Antigo Testamento) e em Iroko (Candomblé Keto), por exemplo.

Além disso, em muitas tradições as árvores são percebidas como os seres responsáveis por fazer a ponte entre céu-terra, sagrado-profano, transcendente-imanente e imaterial-material. Estabelecem, portanto, através de sua verticalidade, uma conexão com o divino.

A árvore formosa
inspiram várias religiões
FOTO: CASSIO VASCONCELLOS

No reino vegetal, o gênero Ficus é um dos mais presentes em diversas tradições religiosas pelo mundo. É neste gênero que encontramos as espécies de figueiras, tão comuns na Mata Atlântica.

Muitas espécies de figueira acompanham a história da humanidade há milênios, figurando em civilizações antigas como a Mesopotâmia, indiana, egípcia, grega, romana e judaica, quase sempre relacionadas a valores culturais e religiosos.

Na Índia, por exemplo, a Ficus Religiosa L. é sagrada pois foi sob ela que Sidarta Gautama se iluminou e se tornou Buda. 

Na verdade, além dele, outros Budas se iluminaram debaixo de figueiras e todos os budas se iluminaram sob alguma árvore. Além disso, antes mesmo da tradição Budista, esta espécie já era venerada na Índia, na tradição védica sendo associada à divindade Vishnu, responsável por sustentar o universo ao lado de Brahma e Shiva.

Podemos citar também a importância religiosa de uma outra espécie, a Ficus carica L. (o figo comestível), que na tradição Islâmica aparece na Sura 95 do Corão, quando Maomé jura pelo figo.

No Egito, há registros do plantio da Ficus sycomorus L. datando de aproximadamente 3.000 anos antes de Cristo. Nesta tradição, a árvore era utilizada para a confecção dos sarcófagos dos faraós por ser relacionada à Deusa-Árvore Nht. 

A mesma espécie era sagrada também na Grécia Antiga. Seus frutos eram fundamentais para as festas de celebração do Deus da Fertilidade, Baco, que teria se apaixonado pela ninfa Syke (Figo em Grego).

Para os Romanos, foi sob uma Ficus Ruminalis que os irmãos Rômulo e Remo foram amamentados por uma loba sob uma árvore dessa espécie. Por conta desse mito, as árvores desta espécie são relacionadas à Rumina, a Deusa da Amamentação e Fertilidade.

Importância na cultura judaico-cristã

No ocidente, as figueiras ocupam um lugar de destaque na cultura judaico-cristã, influenciando a religiosidade de muitos brasileiros. Nesta tradição, elas representam a Casa do Senhor na natureza. São reconhecidas como a morada do sagrado no mundo material devido ao seu grande porte e por sua copa abrigar muitos frutos.

Existem mais de 40 referências às figueiras no Antigo Testamento da Bíblia. Em Gênesis 3:7 é dito “O que trata da figueira comerá do seu fruto; e o que cuida do seu Senhor será honrado”. Além disso, Adão e Eva após comerem o fruto proibido por Deus no Jardim do Éden, descobriram sua humanidade e utilizaram as folhas da figueira para se cobrir.

Já no Novo Testamento, a figueira é citada 16 vezes, sendo a mais famosa delas quando Jesus seca uma figueira por que está já não dá mais frutos: “Cedo de manhã, ao voltar para a cidade, teve fome; e vendo uma figueira à beira do caminho; aproximou-se dela; e, não tendo achado senão folhas, disse-lhe: nunca mais nasça fruto de ti. E a figueira secou imediatamente…”. Ambas as passagens se referem à espécie Ficus carica L.

Religiões de matriz africanas no Brasil

Para as religiões de matriz africana a natureza é fundamental. Os orixás têm seus pontos de força associados a elementos da natureza como os mares, os rochedos, as florestas, os mangues e as cachoeiras, por exemplo.

Na costa Ocidental africana, as figueiras são cultuadas e percebidas como a morada ou a própria representação do orixá Iroko. Nesse contexto, era percebida também como Igí Olorum, a “Árvore Deus”, responsável por conectar Òrun (o mundo sobrenatural) e Àiyé (o mundo terreno).


No Brasil, dentre as principais expressões religiosas de matriz africana, o culto a Iroko está presente sobretudo no Candomblé, tendo menos destaque na Umbanda. 

O orixá Iroko é cultuado no Candomblé Ketu, tendo seu equivalente Loko, na nação Jeje. As figueiras também são cultuadas na nação Congo/Angola como o Inquice Tempo. Nestas três nações, as figueiras estão associadas a símbolos relacionados ao tempo, à durabilidade e à longevidade.

As folhas das figueiras são usadas em rituais de iniciação, tendo junto aos seus pés oferendas alimentares e ojás (panos brancos ou coloridos) são amarrados em torno delas para ornamentá-las e evidenciar sua sacralidade.

O que a paisagem nos conta sobre as figueiras

Mas o que tudo isso tem a ver com as florestas da Mata Atlântica de hoje?

Grande parte dos remanescentes florestais de Mata Atlântica no Sudeste do Brasil são compostos por florestas que regeneraram depois de diferentes usos ao longo do tempo. Uma das principais atividades que afetou essas matas no passado foi a produção de carvão vegetal, presente na região desde o século XVII.

No processo de produção do carvão era feita uma escolha seletiva das árvores que seriam cortadas. Considerando que o corte da madeira era feito de maneira muito arcaica, utilizando instrumentos básicos como machado e enxada, podemos supor que algumas árvores não foram utilizadas para obtenção de carvão por motivos práticos. Como alguns indivíduos eram muito grandes, seria necessário um gasto energético muito alto, não valendo a pena o esforço. Outro motivo seria o fato de algumas espécies com látex não serem consideradas de boa qualidade para produção do carvão, podendo estragar a fornada.

Uma velha figueira, em 1842, de
Carl Friedrich Philipp von Martius
IMAGEM: Biblioteca Nacional

Além da motivação logística, outras árvores também foram poupadas do corte por seu valor simbólico-religioso, como no caso das figueiras, estimadas tanto pela cultura judaico-cristã quanto pelas culturas afro-brasileiras, ambas presentes no contexto da Mata Atlântica do Sudeste do Brasil.

Protegidas por seu simbolismo, as figueiras foram deixadas de pé no processo de seleção das madeiras que seriam utilizadas serem utilizadas na produção do carvão. Assim, podemos dizer que por conta do seu valor religioso, muitas figueiras presentes hoje na Mata Atlântica são remanescentes de outros tempos, muito mais antigas do que o restante da comunidade arbórea que as cercam.

Em muitos trechos de Mata Atlântica é comum encontrarmos figueiras que superam em muito os demais indivíduos arbóreos no seu diâmetro do caule e sua altura total. São verdadeiras gigantes da floresta, com idade muito superior à do restante da mata. 


Podemos dizer que muitas das florestas da Mata Atlântica são ainda relativamente “jovens”, mas que em seu interior tem a companhia de “velhas senhoras” que guardam histórias de outros tempos, como as figueiras.

As figueiras remanescentes da Mata Atlântica são representações de crenças, ritos e simbologias. Podem ser compreendidas ainda como elementos culturais que chegaram aos dias de hoje graças à potência das memórias e tradições que foram passadas ao longo do tempo através da oralidade. São um legado cultural que nos permite contar histórias como essa, contendo uma importância não só religiosa, mas também ecológica.

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