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Intolerância religiosa cresce atrelada ao racismo, misoginia e homofobia

Relatório confirma que a maioria dos violadores é de evangélicos; principais vítimas são seguidores de religiões de matriz africana


Ivanir dos Santos
babalawô e professor de pós-graduação em história comparada, Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)

The Conversation
plataforma de informação e análise produzida por acadêmicos e jornalistas

No Brasil, por lei, o Estado é laico, o que é ratificado e assegurado pela Constituição Federal de 1988: “É inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a sua liturgia, nos termos da lei, a prestação de assistência religiosa nas entidades civis e militares de internação coletiva.” 

No entanto, um dos maiores desafios da sociedade brasileira é a intolerância religiosa, problema que vem crescendo no país nos últimos anos.

Não que a questão da intolerância religiosa seja um fenômeno recente no Brasil. Mas, apesar de um longo histórico, que remonta aos tempos coloniais, as autoridades públicas brasileiras não ampliam ou aperfeiçoam as poucas políticas públicas voltadas a combater a intolerância religiosa, alegando não haver dados suficientes sobre o problema.

Os dados, contudo, existem, embora não dialoguem entre si. E foi com o intuito de reunir essas informações, ainda que incompletas ou esparsas, que um grupo de pesquisadores e pesquisadoras do Observatório das Liberdades Religiosas do Centro de Articulação de Populações Marginalizadas (OLR/CEAP), do qual faço parte, construiu, em parceria com a Representação da UNESCO no Brasil, o II Relatório sobre intolerância religiosa: Brasil, América Latina e Caribe, publicado em setembro de 2023.
Principalmente para
evangélicos, religiões da
tradição africana são
um mal a ser combatido

O relatório — que será apresentado por mim durante a 55ª Sessão do Conselho de Direitos Humanos da ONU, que acontece entre os dias 3 a 8 de março em Genebra, na Suíça — mostra que os casos de intolerância religiosa no Brasil cresceram entre 2019 e 2021, e que os adeptos das religiões de matriz africana continuam sendo os mais atingidos por este fenômeno.

O relatório traz ainda outra questão importante: a intolerância religiosa muitas vezes está atrelada a outros crimes, como o racismo, a misoginia e a homofobia.

No caso das violências contra religiões de matriz africana, elas se alinham ao racismo num fenômeno social construído a partir de uma falsa ideia de democracia racial e equidade religiosa, mas que sempre usou todos os artifícios possíveis para marginalizar, invisibilizar e estigmatizar os corpos, culturas e tradições negras.

Disque 100

Para a elaboração do relatório, a equipe do Observatório reuniu dados do Disque 100 (do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos), do Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro (ISP) e da Secretaria Estadual de Desenvolvimento Social e Direitos Humanos, além de casos levantados pela Comissão de Combate à Intolerância Religiosa (CCIR), denúncias veiculadas na imprensa e pesquisas desenvolvidas pelas comunidades indígena, muçulmana e judaica.

Os dados do Disque 100 são o que oferecem a maior abrangência, trazendo informações em nível nacional. No período analisado pelo relatório — entre 2019 e 2021 —, foram registrados 1.796 casos de intolerância religiosa no canal de denúncias: 477 em 2019; 353 em 2020, quando houve uma redução do número de casos, possivelmente em razão da pandemia da Covid-19, que impôs medidas restritivas de circulação e sociabilidade; e 966 casos em 2021. E esses números são, provavelmente, subnotificados.
Rio de Janeiro

No âmbito regional, centramos o levantamento no estado do Rio de Janeiro. Os dados levantados pela Comissão de Combate à Intolerância Religiosa apenas em 2021 somaram 47 casos de intolerância, uma média de 3,9 casos por mês. 

Preocupante notar que, embora o maior número de ocorrências envolva vizinhos intolerantes (23,8%), tem crescido o envolvimento de figuras públicas (19,5%) e de ministros religiosos (13%) nos casos, que passam a ter um poder de irradiação maior.

Nos casos levantados pela CCIR, a injúria religiosa dirigida a pessoas — seguida ou não de ameaças e agressão física — representa 26% do total de casos. Já as injúrias a comunidades religiosas representam 23,9% dos casos, enquanto as vandalizações de templos respondem por 21,7% das ocorrências.

No âmbito regional, os dados do Disque 100 apontaram que não houve um aumento significativo no número de casos entre 2019 e 2020 (77 e 78, respectivamente). Em 2021, no entanto, o aumento foi alarmante: saltou para 236.

Grupos atingidos

A intolerância religiosa no Brasil faz parte de um processo de dominação social e política europeia, que desde o período colonial passou a dividir o que representava a “boa” e a “má” religião. 

Tal visão e representação religiosa foi construída a partir do encontro entre a religião cristã e as religiosidades africanas em solo brasileiro, onde os adeptos das religiões africanas, com suas culturas e suas representações, configuram um mal a ser combatido pelos não adeptos a estas religiosidades.


Os dados de todas as fontes coletadas para o relatório apontam que as religiões de matriz africana continuam sendo as mais perseguidas em todo o Brasil. Mas elas não são as únicas: os relatos e dados mostram também eventos antissemitas, violência contra casas de reza indígenas, islamofobia e vítimas de outras religiões, como católicos, evangélicos, espíritas e praticantes de Wicca.

De acordo com o Observatório Judaico dos Direitos Humanos no Brasil, entre janeiro de 2019 e junho de 2022, foram registrados 384 ocorrências antissemitas, com violações como agressão verbal, violência física, vandalismo e deslegitimação de Israel.

No caso dos indígenas, o relatório coletou, entre novembro de 2020 e fevereiro de 2021, 21 casos de violências contra mulheres rezadeiras (nhandesy) em comunidades Kaiowá e Guarani, alguns deles com o incêndio de casas de rezas.

Já as ocorrências de islamofobia foram coletadas pelo grupo de pesquisa GRACIAS (Grupo de Antropologia em Contextos Islâmicos), coordenado pela professora da USP Francirosy Campos Barbosa, que fez um levantamento a partir de um questionário destinado à comunidade muçulmana. Foram 653 respostas entre fevereiro e maio de 2021. 

As respostas mostram que o fenômeno da islamofobia é complexo e multidimensional, e muitas vezes se intercruza com as questões políticas e de classe, raça e gênero.
Próximos passos

O relatório apresenta dados até 2021, mas continuamos com o monitoramento, que segue mostrando um crescimento assustador das perseguições religiosas, principalmente por meio de manifestações e discursos com base no ódio religioso. 

Segundo dados do Instituto de Segurança Pública, por exemplo, o estado do Rio de Janeiro registrou, em 2023, cerca de 3 mil crimes que podem estar relacionados à intolerância religiosa.

Por isso, a construção de um Plano Nacional de Combate à Intolerância Religiosa, que proponha ferramentas e ações para combater essas violências, é fundamental. 

Nesse sentido, uma das primeiras ações precisa ser a produção de estatísticas públicas sólidas e oficiais sobre a intolerância religiosa. Essa ainda é uma lacuna a ser enfrentada pelo Estado brasileiro na busca pelo fortalecimento da democracia.

Na produção do relatório, identificamos um certo desencontro de informações e uma diversidade de fontes de dados que apontam para a necessidade de uma maior centralização das instituições do Estado no que se refere a organização e sistematização dos dados.

O que o Observatório das Liberdades Religiosas propõe é um diálogo com o poder público e a sociedade civil, para debater as estratégias de luta contra a intolerância religiosa e o racismo. E essa discussão não se restringe ao Brasil, ela é mundial.

É nessa perspectiva de um diálogo internacional que se dá a sessão da ONU para a apresentação do relatório, assim como uma agenda de reuniões com entidades internacionais, como o Conselho Mundial de Igrejas

Em todo o mundo, precisamos encontrar formas de impedir ou coibir comportamentos intolerantes que tentem negar, apagar, perseguir ou demonizar a existência de outras religiões. Sem isso, a própria democracia é ameaçada.

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