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Livre arbítrio é uma ilusão que nos transformou como espécie

Real ou não, esse mecanismo melhora a aprendizagem e condiciona o comportamento futuro das pessoas


Laureano Castro
professor de biologia, Universidade Nacional de Educação a Distância, Espanha

Miguel Ángel Castro Nogueira
professor, Universidade Internacional de La Rioja, Espanha

Miguel Ángel Toro Ibáñez
professor e pesquisador na área de genética, Universidade Politécnica de Madri, Espanha

The Conversation
plataforma de informação e análise produzida por acadêmicos e jornalistas

A sensação de identidade envolve não apenas a sensação de ser você mesmo, mas também a sensação de estar no controle de nossas ações, pensamentos e decisões. Em outras palavras, de possuir livre arbítrio. 

A natureza e a existência, real ou não, desse tipo de controle sobre nossas ações têm sido fonte de reflexão ao longo da história. As principais abordagens do problema se resumem em três posições: libertarianismo, determinismo e compatibilismo.

1 - Os libertários acreditam no livre arbítrio espectral. Trata-se de uma espécie de entidade metafísica capaz de influenciar o cérebro, fazendo acontecer no mundo físico coisas que, de outra forma, não aconteceriam.

2 - Os deterministas acreditam que tudo o que acontece no universo, incluindo nossos pensamentos e ações, é completamente determinado por causas físicas internas e externas. Eles consideram o livre arbítrio uma ilusão.

3 - Os compatibilistas consideram o livre arbítrio espectral uma ilusão, mas mantêm a existência do livre arbítrio entendido como uma experiência perceptiva que as pessoas sentem que podemos agir de acordo com nossos reais desejos e intenções. Isso é compatível com um universo determinístico.

O cérebro humano
precisa der uma
justifica ao que
acontece
IMAGEM: ALBERTO ANDREI ROSUL / Shutterstock

A abordagem compatibilista é a posição que assumimos aqui. Os indivíduos têm capacidade real de realizar ou inibir ações voluntárias e de agir de acordo com nossas crenças, valores e objetivos.

Nas palavras do neurobiólogo Anil Seth, as ações voluntárias expressam o que eu, como pessoa, quero fazer, embora provavelmente, na realidade, não possa fazer nada naquele momento além do que escolhi fazer. 

Seth assume, como fez Einstein na sua época, a posição do filósofo Schopenhauer: uma pessoa pode fazer o que quiser, mas não pode querer (no sentido de escolher) o que quer.

Planejar

A sensação de que poderíamos ter agido de forma diferente é um traço interessante do ponto de vista adaptativo. Sugere que, numa situação semelhante, poderíamos mudar a nossa forma de agir dependendo das consequências da ação tomada. Isto é, as experiências de volição podem ser mais úteis para orientar o comportamento futuro do que para explicar o comportamento presente. 

Daí a resistência de muitos pesquisadores em considerar que o livre arbítrio é apenas uma ilusão no sentido determinista e a insistência em afirmar que ele tem tanta realidade quanto qualquer outra percepção consciente, como a experiência visual da cor vermelha.

O neurocientista Michael Gazzaniga estudou como o cérebro interpreta os motivos que nos levam a tomar decisões, tentando dar coerência às ações realizadas e avaliando os seus resultados. O livre arbítrio nos ajuda a perceber que podemos aprender com nossas ações anteriores para possivelmente fazer uma escolha diferente na próxima vez.

Desta forma, o livre arbítrio melhora a aprendizagem e condiciona o comportamento futuro das pessoas.

Interpretações

Muito do sucesso da nossa espécie está ligado à sua capacidade de dar origem a uma cultura cumulativa de grande valor adaptativo, o que exigiu o desenvolvimento da capacidade de ensinar. O ensino, entendido como a transmissão de informações sobre o que devemos fazer e como fazê-lo, transformou-nos em organismos culturais .

Nossos ancestrais com capacidade de aconselhar sobre como agir, a quem chamamos de Homo suadens (do latim suadeo: valorizar, aprovar, aconselhar), geraram um sistema de herança cultural mais eficiente. Baseia-se na transmissão de informações sobre o valor de um comportamento e expressa através da sua aprovação ou rejeição.

Em nossa opinião, o livre arbítrio, a percepção de que podemos escolher o nosso comportamento conforme o consideramos adequado ou não, tem contribuído decisivamente para o desenvolvimento do ensino na linhagem hominínea.

Conversão

A aprovação ou desaprovação social do comportamento funciona como um critério de avaliação que permite às pessoas ajustar o seu comportamento ao que se espera delas.

As pessoas percebem as emoções sociais derivadas da prática de um comportamento como se fossem sinais objetivos do seu valor: se for aprovado, tendem a considerá-lo bom; se for reprovado, considerá-lo ruim. Isto é muito diferente da desaprovação que um chimpanzé macho alfa exerce em relação a um chimpanzé mais jovem que tenta acasalar com uma fêmea. 

Não há nada aqui que implique uma categorização em termos de bom ou mau aplicável a esse comportamento.

O ensino transforma o reforço social ou a punição em crenças individuais sobre o valor intrínseco do comportamento. Nos termos de Ortega y Gasset, as crenças são. Os indivíduos se apropriam deles, internalizam-nos e transmitem-nos.

Esta transmissão de como devemos comportar-nos facilita tanto a acumulação cultural como a coordenação necessária para que a cooperação para o benefício mútuo seja bem sucedida, outro pilar fundamental no sucesso adaptativo da nossa espécie.

Histórias coletivas

Os seres humanos crescem num mundo social cheio de pistas avaliativas sobre como se comportar. Os jovens sapiens aprendem boa parte de suas práticas e crenças como resultado da aplicação de critérios instrumentais às variantes culturais que observam em seu ambiente, mas muitas outras são adquiridas simplesmente por meio de reforços sociais.

A interação social em chave avaliativa permite a elaboração de histórias compartilhadas que funcionam como crenças coletivas e dão origem às normas que regulam a cooperação e homogeneizam o comportamento em cada uma das sociedades humanas.

O ser humano é inesgotável criador e consumidor de histórias. Se estivermos certos, sua origem está na tentativa de justificar o que nos acontece. 

Se quisermos compreender o extraordinário sucesso que algumas dessas histórias adquirem, como os nacionalismos e as religiões, devemos incorporar outros aspectos da natureza humana naquilo que já foi expresso, como o tribalismo ou a necessidade de dar sentido à nossa existência.

> Esse artigo foi escrito originalmente em espanhol.

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