Pular para o conteúdo principal

Meus ancestrais foram escravizados pelos jesuítas. Como a Igreja pode reparar isso?

Documentação da comercialização de negros pela Companhia de Jesus faz parte de uma história que ainda precisa ser contada


Monique Trusclair Maddox
presidente da Fundação Verdade e Reconciliação dos Descendentes, EUA, e voluntária em atividades na Igreja Católica

America
revista americana da Companhia de Jesus

No domingo, 16-04-2016, saí da missa com o coração cheio. Lembro-me de que era um dia bonito, mas outros detalhes são indistintos para mim agora. Porque momentos depois meu telefone se iluminou com palavras que mudariam minha vida e que nunca esperava ver.

“272 escravos foram vendidos para salvar a Universidade de Georgetown”, lia a manchete do New York Times. “O que ela deve aos seus descendentes?”

Na reportagem, vi menções a Maringouin, no estado de Louisiana, minha cidade natal. Vi os sobrenomes de meus pais e avós em uma escritura de venda de 1838 de 272 homens, mulheres e crianças. 

Mais tarde, descobriria que uma das crianças, Jackson Hawkins, de 3 anos, era bisavô de minha mãe, nascido escravo e vendido como criança pelos jesuítas por um pouco de lucro. Outro ancestral, Nace Butler, tinha um nome que mostrava a devoção de seus próprios pais à igreja que os escravizou. Nace é uma abreviação de Inácio.

Monique: o bisavô da mãe
dela foi vendido pelos
jesuítas; ele era criança
FOTO: ARQUIVO PESSOAL

Como posso expressar em palavras os sentimentos que me invadiram quando descobri que minha família era propriedade e foi vendida pela minha própria igreja? 

Eu nem sequer conseguia entender como a ordem dos jesuítas, que ostenta 52 santos e centenas de membros beatificados, poderia também ter perpetrado, não apenas em Georgetown, mas ao longo de centenas de anos, um dos crimes mais profundos contra a humanidade na história moderna. Por um tempo, não estava certo de como jamais conseguiria olhar nos olhos de um padre novamente.

Termos de reconciliação

Nos oito anos desde aquele dia, eu e muitos outros descendentes da escravidão jesuíta temos viajado em uma jornada do coração e da alma. Mesmo hoje, permaneço confusa e desiludida ao ponto do entorpecimento que minha igreja não apenas cometeu esse pecado, mas também levou centenas de anos para confessar que era um pecado. 

Os descendentes não tiveram escolha senão enfrentar esse aspecto de nossa história. Seu legado percorre nossas árvores genealógicas e nunca se afasta de nossas mentes. Ele eternamente enredou nossa fé com a agonia de nossos ancestrais.

Mas, quando confrontados com a escolha entre endurecer nossos corações para a instituição que atormentou nossas famílias ou abrir nossos corações no espírito de reconciliação, escolhemos a unidade.

Jesuítas individuais tomaram nossas mãos e começaram a caminhar conosco. Mas o peso desse pecado paira sobre o pescoço da Igreja — e somente a Igreja pode reconciliar com nosso passado compartilhado e tomar as ações necessárias para restaurar a justiça de Deus.

Os termos sempre foram claros: o perdão é uma empreitada espiritual que apenas um indivíduo pode completar, enquanto a reconciliação é um ato externo que requer dois. 

Essa parceria entre os errantes e os prejudicados é parte do que torna a reconciliação tão difícil, e nós descendentes sabíamos intimamente que este não era um capítulo de sua história que os jesuítas queriam ler. 

Também reconhecemos que, sem reconciliar com o passado, a Igreja nunca seria capaz de liderar com integridade ou autoridade. Como olharíamos para nossos padres da mesma forma se eles não fizessem, nas palavras de São Francisco de Assis, “curar feridas, unir o que foi separado e trazer de volta aqueles que se perderam”?

Parece-me que minha igreja é melhor em ajudar outros que se perderam do que em reconhecer quando a igreja mesma se perdeu. Talvez seja por isso que os descendentes não abrirão mão desta visão de reconciliação. 

Nossa fé católica nos foi transmitida por nossos ancestrais, e é a única coisa de valor que a igreja já deu a eles. Somos compelidos a ajudar a igreja a encontrar seu caminho e, principalmente, a restaurar tudo o que foi perdido.

Além disso, nosso compromisso em restaurar a dignidade de nossos ancestrais não nos permite nos afastar. Não podemos. 

O simples fato de nossa existência significa que a luta deles pela sobrevivência não foi em vão, e não permitiremos que seja. A Igreja pode ter lançado uma longa sombra de vergonha sobre nossas famílias há 200 anos, mas estamos comprometidos em expulsá-la com a luz brilhante da verdade.

Ao mesmo tempo, o compromisso da Igreja em transformar o mundo por meio dos valores do Evangelho não deve permitir que a instituição se afaste também. Esse é um trabalho longo, difícil e ocasionalmente confuso. Mas é o trabalho que Deus, em sua sabedoria, colocou aos nossos pés como um empreendimento que nenhum de nós pode fazer sozinho.

Tentando entender

Pouco após saber da escravidão dos meus ancestrais pelos jesuítas, li uma carta de 12-11-1838. Foi escrita pelo padre Peter Havermans, superior jesuíta da plantação de Newtown, ao superior geral em Roma, o padre John Philip Roothaan.

Na carta, o padre Havermans expressou sua angústia com o que testemunhou em 1838 com a venda de meus ancestrais. 

Ele escreveu logo após para o superior religioso da Província Jesuíta de Maryland e o ex-governador da Louisiana chegarem a Newtown — ou, como meus ancestrais teriam conhecido esses homens, o vendedor e comprador daquelas vidas humanas.

Afirmou: "Uma mulher, mais piedosa que as outras, e na época grávida, mais exigia minha compaixão. Ela estava vindo em minha direção para pela última vez poder me cumprimentar e buscar benção, e ela observou enquanto se ajoelhava: 'Se alguém alguma vez tivesse razão para se desesperar, eu não a tenho agora?' 'Não sei em que dia o parto virá, seja na estrada ou no mar.' 'O que será de mim?' 'Por que mereço isso?'

Seu testemunho, misericordiosamente documentado pelo angustiado padre Havermans, é um convite de nossa história e das almas que nos precederam.

Fotografias de descendentes de
escravos vendidos pela
Georgetown University e
pelos jesuítas de Maryland
para o sul da Louisiana em 1838

FOTO: CLAIRE VALL / AMERICAN ANCESTORS


Não encontro palavras para descrever como seu testemunho me afeta. Vender uma mulher grávida viola cada fibra moral em minha alma. Para ela se ajoelhar diante do padre sabendo que outro padre havia realizado a transação horrenda é abominável para mim. Se eu ficar sozinho com esse e outros trechos semelhantes, quem sabe que emoções esses excertos desencadearão?

As emoções são importantes e essenciais para o processo de cura e reconciliação, mas não são suficientes. É no compartilhar, na companhia de outros, na oração e no discernimento juntos sobre nosso passado que podemos encontrar uma resposta mais repleta de fé para nosso futuro. Pois sei que esta não é apenas minha história; também é a história dos jesuítas. A história da Igreja. É nossa história compartilhada.

A Fundação Verdade e Reconciliação dos Descendentes foi criada para podermos nos levantar para enfrentar este momento da história. Precisamos de apoio financeiro para apoiar as aspirações educacionais dos descendentes, apoiar descendentes idosos e enfermos e promover programas de cura racial em toda a América. Mas não importa o quão formidável uma visão de bilhões de dólares possa parecer, não é uma resposta adequada ao que foi tirado de minha família.

Não queremos apenas que os programas sejam financiados, queremos uma parceria com a Igreja. Queremos reconstruir nossa relação. Assim como enfrentarei meus antepassados, Nace Butler e Isaac Hawkins, quando encontrar minha recompensa eterna, os líderes eclesiásticos poderão ficar cara a cara com o padre Havermans e outros que terão grande interesse no que os católicos fizeram desde que conheci descendentes como eu.

Rezo para que todos possamos dizer que aproveitamos todas as oportunidades para experimentar o perdão, a cura e a renovação espiritual em nosso relacionamento com Deus e uns com os outros. A verdade do passado está escrita, mas a verdade do futuro depende de nós. Comecemos de novo.

> Esse artigo foi publicado originalmente em inglês com o título My ancestors were enslaved by the Jesuits. What does the church owe to descendants like me?

Comentários

Post mais lidos nos últimos 7 dias

90 trechos da Bíblia que são exemplos de ódio e atrocidade

Wyllys luta contra a 'poderosa direita religiosa', diz Guardian

Jornal dedicou texto de 700 palavras ao deputado Wyllys disse que se sente como um Don Quixote O jornal britânico The Guardian afirmou que o deputado Jean Wyllys (PSOL-RJ), 37, na foto, tem sido um guerreiro contra a poderosa direita religiosa brasileira. Nesse embate, afirmou o jornal, “o primeiro deputado federal assumidamente homossexual do Brasil precisa de todo o apoio que puder conseguir”. Comparou Wyllys a Havey Milk (1930-1978), que foi o primeiro político gay assumido dos Estados Unidos  - ele foi assassinado. Wyllys disse ao The Guardian que às vezes, nessa batalha, se sente como dom Quixote. “É uma batalha difícil de combater, mas essa é a minha vocação.” Ele afirmou que pregadores radicais evangélicos avançaram “silenciosamente nos corações e mentes” dos brasileiros. “Agora, estamos começando a perceber a força política em que se tornaram.” Para o deputado, os pastores radicais estão com “as mãos sujas de sangue” porque a sua pregação ince...

Caso Roger Abdelmassih

Violência contra a mulher Liminar concede transferência a Abelmassih para hospital penitenciário 23 de novembro de 2021  Justiça determina que o ex-médico Roger Abdelmassih retorne ao presídio 29 de julho de 2021 Justiça concede prisão domiciliar ao ex-médico condenado por 49 estupros   5 de maio de 2021 Lewandowski nega pedido de prisão domiciliar ao ex-médico Abdelmassih 26 de fevereiro de 2021 Corte de Direitos Humanos vai julgar Brasil por omissão no caso de Abdelmassih 6 de janeiro de 2021 Detento ataca ex-médico Roger Abdelmassih em hospital penitenciário 21 de outubro de 2020 Tribunal determina que Abdelmassih volte a cumprir pena em prisão fechada 29 de agosto de 2020 Abdelmassih obtém prisão domicililar por causa do coronavírus 14 de abril de 2020 Vicente Abdelmassih entra na Justiça para penhorar bens de seu pai 20 de dezembro de 2019 Lewandowski nega pedido de prisão domiciliar ao ex-médico estuprador 19 de novembro de 2019 Justiça cancela prisão domi...

Em vídeo, Malafaia pede voto para Serra e critica Universal e Lula

Malafaia disse que Lula está fazendo papel de "cabo eleitoral ridículo" A seis dias das eleições, o pastor Silas Malafaia (foto), da Assembleia de Deus Vitória em Cristo, gravou um vídeo de 8 minutos [ver abaixo] pedindo votos para o candidato à prefeitura de São Paulo José Serra (PSDB) e criticou a Igreja Universal e o ex-presidente José Inácio Lula da Silva. Malafaia começou criticando o preconceito que, segundo ele, existe contra pastor que emite opinião sobre política, o mesmo não ocorrendo com outros cidadãos, como operários, sindicalistas, médicos e filósofos. O que não pode, afirmou, é a Igreja, como instituição, se posicionar politicamente. “A Igreja é de Jesus.” Ele falou que tinha de se manifestar agora porque quem for para o segundo turno, se José Serra ou se Fernando Haddad, é quase certeza que será eleito, porque Celso Russomanno está caindo nas pesquisas por causa do apoio que tem recebido da Igreja Universal. Afirmou que apoia Serra na expectativa de...

Eleição de Haddad significará vitória contra religião, diz Chaui

Marilena Chaui criticou o apoio de Malafaia a Serra A seis dias das eleições do segundo turno, a filósofa e professora Marilena Chaui (foto), da USP, disse ontem (23) que a eleição em São Paulo do petista Fernando Haddad representará a vitória da “política contra a religião”. Na pesquisa mais recente do Datafolha sobre intenção de votos, divulgada no dia 19, Haddad estava com 49% contra 32% do tucano José Serra. Ao participar de um encontro de professores pró-Haddad, Chaui afirmou que o poder vem da política, e não da “escolha divina” de governantes. Ela criticou o apoio do pastor Silas Malafaia, da Assembleia de Deus do Rio, a Serra. Malafaia tem feito campanha para o tucano pelo fato de o Haddad, quando esteve no Ministério da Educação, foi o mentor do frustrado programa escolar de combate à homofobia, o chamado kit gay. Na campanha do primeiro turno, Haddad criticou a intromissão de pastores na política-partidária, mas agora ele tem procurado obter o apoio dos religi...

Padre Marcelo diz não gostar de gatos porque eles são traiçoeiros

Igreja Católica já foi perseguida de gatos Em missa para mais de dez mil fiéis e com transmissão pela TV, o padre Marcelo disse no começo de outubro de 2011 que gosta de cachorro, mas não de gato porque se trata de um bicho traiçoeiro. O padre tem três cachorro e foi mordido pelo vira-lata de sua mãe.

Entidades religiosas vão poder questionar leis, prevê emenda

Autor da emenda é o deputado evangélico João Campos A CCJ (Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania) da Câmara aprovou hoje a PEC (Proposta de Emenda à Constituição) 99/11 que concede às entidades religiosas de âmbito nacional o direito de propor ação direita de inconstitucionalidade e ação declaratória de constitucionalidade ao STF (Supremo Tribunal Federal). O autor da PEC é o deputado João Campos (PSDB-GO), que é também presidente da Frente Parlamentar Evangélica. Para ser submetida à votação, no plenário, a proposta ainda terá de ser aprovada por uma comissão especial, em prazo não previsto. Caso ela seja aprovada pelo plenário da Câmara, entidades como o Supremo Concílio da Igreja Presbiteriana do Brasil, a Convenção Batista Nacional e a CNBB (Conferência Nacional dos Bispos Brasileiros) estarão habilitadas a questionar leis relacionadas ao aborto, concessão de direitos aos homossexuais e outros temas de interesse dos religiosos. Tweet ...

Sottomaior responde a Gandra: fundamentalismo ateu é ficção

Título original: O fundamentalismo de cada dia por Daniel Sottomaior para Folha em resposta a Integrante da Opus Dei critica o ‘fundamentalismo ateu’ brasileiro Sottomaior é presidente da  Associação Brasileira  dos Ateus e Agnósticos Segundo Ives Gandra, em recente artigo nesta Folha ("Fundamentalismo ateu", 24/11), existe uma coisa chamada "fundamentalismo ateu", que empreende "guerra ateia contra aqueles que vivenciam a fé cristã". Nada disso é verdade, mas fazer os religiosos se sentirem atacados por ateus é uma estratégia eficaz para advogados da cúria romana. Com o medo, impede-se que indivíduos possam se aproximar das linhas do livre-pensamento. É bom saber que os religiosos reconhecem o dano causado pelo fundamentalismo, mas resta deixar bem claro que essa conta não pode ser debitada também ao ateísmo. Os próprios simpatizantes dos fundamentos do cristianismo, que pregam aderência estrita a eles, criaram a palavra "fund...

Veja 14 proibições das Testemunhas de Jeová a seus seguidores