Grupo da Unesp constatou que mesmo quantidades pequenas de dois agrotóxicos encontrados em áreas de cultivo de cana podem causar a morte dos animais em 24 horas
Mônica Tarantino
Mônica Tarantino
jornalista
Agência FAPESP
Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo
Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo
Os pesticidas parationa-metílica (MP) e imazapique (IMZ) estão entre os produtos borrifados nas plantações de cana-de-açúcar da região de Presidente Prudente, no interior de São Paulo.
Por causa de sua toxicidade, é grande a preocupação com o impacto dos resíduos no solo e nas águas. “Nos peixes, um dos efeitos desses produtos é a morte por asfixia”, conta o pesquisador Rafael Rubira, da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Estadual de São Paulo (FCT-Unesp).
Rubira e seus colegas analisaram os efeitos dessas substâncias nas brânquias de 150 tilápias-do-nilo (Oreochromis niloticus) mantidas em aquários construídos no laboratório da faculdade. As brânquias ou guelras são órgãos respiratórios que absorvem o oxigênio da água e eliminam dióxido de carbono.
O time de pesquisadores começou o estudo pelas brânquias por serem o primeiro ponto de contato dos peixes com essas substâncias, mas outros sistemas e órgãos, como fígado, rins e coração, estão sendo analisados. A tilápia foi escolhida por ser o peixe mais consumido no país, conforme o pesquisador.
O critério de seleção dos pesticidas está referenciado em pesquisas anteriores que identificaram a presença de resíduos no solo e nas águas próximas às plantações e assentamentos humanos.
“Ficamos surpresos em constatar que a exposição a quantidades muito pequenas desses pesticidas, abaixo inclusive dos limites permitidos pela lei, foi suficiente para danificar as brânquias de tilápia”, afirma o pesquisador. Graduado em física, ele tem mestrado e doutorado em ciências e engenharia de materiais, com foco em metodologias sofisticadas para detectar partículas de pesticidas.
Foram analisadas 150 tilápias do Nilo (Oreochromis niloticus) mantidas em aquários na Unesp ILUSTRAÇÃO: RAFAEL RUBIRA / UNESP |
A investigação recebeu apoio da FAPESP por meio de seis projetos (21/14514-2, 20/05423-0, 20/16310-2, 20/15324-0, 20/15185-0 e 18/22214-6). Os resultados foram divulgados no Journal of Hazardous Materials.
O IMZ faz parte do grupo químico das imidazolinonas, que são herbicidas seletivos usados para combater o crescimento de certos tipos de plantas daninhas presentes no campo. Seu uso é autorizado no Brasil para as culturas de amendoim, arroz, cana-de-açúcar, milho, pastagem, soja, sorgo e trigo.
“Porém, é uma substância altamente tóxica, com elevada solubilidade quando lixiviada em camadas mais profundas do solo”, diz o pesquisador. A lixiviação é um processo pelo qual minerais, nutrientes ou poluentes se movem através do solo ou de um meio poroso, geralmente devido à ação da água, podendo alcançar camadas mais profundas do solo, aquíferos e recursos hídricos subterrâneos.
O MP pertence ao grupo dos organofosforados e é um poderoso inibidor da enzima acetilcolinesterase, que atua na regulação do neurotransmissor acetilcolina, causando efeitos tóxicos no sistema nervoso de animais e com potencial para danificar a pele e os olhos, entre outros sistemas corporais expostos de seres vivos.
“Permitido nos Estados Unidos, com limite de concentração de 9,3 microgramas por litro [µg/L], o MP é proibido no Brasil, mas ainda é encontrado”, relata Rubira. Vale lembrar que o Brasil é o maior produtor mundial de cana-de-açúcar, seguido pela China e pela Índia.
Separados em grupos de dez por tanque, os peixes foram expostos ao IMZ e ao MP. “Neste trabalho, utilizamos animais ainda jovens de pisciculturas, livres da adição de insumos para estimular o crescimento, e os mantivemos em ambiente controlado”, explica Rubira.
Os pesticidas foram diluídos na água em quantidades abaixo dos limites permitidos pela legislação de vários países. Com a ajuda de um equipamento de microscopia confocal, os pesquisadores avaliaram a ação das substâncias sobre o órgão respiratório em 24 horas e depois de 96 horas.
A técnica proporciona imagens tridimensionais nítidas e detalhadas dos tecidos e permite também ver mudanças na intimidade das células.
“Antes íntegras, as brânquias passaram a apresentar alterações prejudiciais à capacidade de absorção de oxigênio, levando os peixes à morte. Novamente nos surpreendemos ao observar que os animais já estavam muito debilitados com 24 horas de exposição”, relata Rubira.
As imagens obtidas revelam que, mesmo em pouca quantidade e em apenas 24 horas, os pesticidas destruíram completamente ou danificaram uma parte muito importante das brânquias, que são os filamentos ou lamelas.
Trata-se de estruturas com muitos vasos sanguíneos, que desempenham um papel fundamental na troca de gases. Para entrar na corrente sanguínea do peixe, o oxigênio extraído da água precisa passar por essas lamelas. “Sua destruição é uma sentença de morte para os peixes”, diz Rubira.
Dados prévios
Antes do experimento com peixes vivos, o pesquisador e seus colegas simularam o impacto desses dois pesticidas em modelos de membranas plasmáticas sintetizadas para ter uma ideia do que poderiam encontrar.
“Nós conseguimos criar modelos de membranas utilizando moléculas de lipídeos semelhantes às encontradas nas brânquias. Os fosfolipídios desempenham um papel importante na regulação do transporte de substâncias entre o interior e o exterior da célula”, explica o pesquisador.
No laboratório, essas estruturas foram bombardeadas com maiores quantidades de IMP e MP. “Quando vimos o resultado, nossa dúvida passou a ser se baixas concentrações afetariam da mesma forma os peixes. Vimos que os efeitos colaterais são os mesmos”, observa o especialista.
A morte de peixes e abelhas não é uma cena incomum na região. “Vemos com frequência, mas acontece principalmente no período de plantio da cana, quando são feitas muitas pulverizações com pesticidas”, diz o pesquisador.
Ele conta que se deparou algumas vezes com a pulverização aérea de pesticidas enquanto coletava amostras das águas da região em áreas próximas a assentamentos humanos, o que contraria a lei. Em 2008, o Ministério da Agricultura emitiu uma diretriz proibindo a pulverização de agrotóxicos a uma distância inferior a 500 metros de áreas urbanas, cidades e fontes de abastecimento de água.
“Não foi o que testemunhei”, diz Rubira. Segundo o pesquisador, os resíduos de pesticidas pulverizados se espalham por quilômetros ao redor da plantação.
“É frequente ouvir queixas dos moradores vizinhos das plantações sobre ardência nos olhos, coceira na pele e na cabeça e manchas cutâneas. Além disso, os resíduos desses pesticidas são cumulativos na água e no solo”, diz o pesquisador.
Na próxima etapa do estudo, o time de pesquisadores analisará as interações químicas ocorridas nas moléculas de gordura (lipídicas) das brânquias. Para isso, usarão um espectrômetro, dispositivo que mede a intensidade da luz ou radiação em diferentes comprimentos de onda ou energia para identificar os átomos.
Depois, com a ajuda de análises computacionais, pretendem avaliar quais alterações estão associadas a processos cancerígenos. “Queremos mostrar, por microespectroscopia, que, se houver alterações no DNA ou no RNA, as próximas gerações de peixes poderão ter malformações”, pontua o cientista.
Outro lado
Procurada pela reportagem, a Organização de Associações de Produtores de Cana do Brasil (Orplana) informou que seu porta-voz não estava disponível.
Já o Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa), questionado sobre a existência de rotinas de monitoramento e controle do tipo de pesticida usado na cultura da cana-de-açúcar, esclareceu que “é de competência dos Estados legislar e fiscalizar o uso de agrotóxicos no âmbito da sua circunscrição.”
O Mapa confirmou que a parationa-metílica tem uso agrícola proibido no Brasil desde 2015. E informou que a Anvisa monitora resíduos de agrotóxicos no âmbito do Programa de Análise de Resíduos de Agrotóxicos em Alimentos (Para).
Consultada, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) relatou que, no período de 2013 a 2022, a parationa-metílica, proibida desde 2015, foi pesquisada em 18.429 amostras de alimentos vegetais coletadas no âmbito do Para, tendo sido detectada em seis amostras (três coletadas em 2014 e três coletadas em 2015). A substância foi proibida por determinação da Anvisa devido a características mutagênicas.
“Como o imazapique não está incluído no escopo de substâncias prioritárias do Para, não há resultados da pesquisa deste ingrediente ativo em amostras coletadas”, informou a Anvisa.
A Secretaria de Meio Ambiente, Infraestrutura e Logística do Estado de São Paulo disse à reportagem para contatar a Secretaria de Agricultura e Abastecimento do Governo de São Paulo, que, por sua vez, alegou que o assunto é da alçada do Mapa.
> O estudo Biological responses to imazapic and methyl parathion pesticides in bioinspired lipid membranes and Tilapia fish pode ser lido em: www.sciencedirect.com/science/article/abs/pii/S0304389423012268.
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