Historiador e militante do catolicismo, o italiano Massimo Faggioli critica no artigo abaixo a estratégia do ateu Richard Dawkins e de progressistas laicos de incentivarem a cultura cristã (e não a religião em si) para deter o avanço islâmico
Massimo Faggioli
historiador
Ele disse isso em uma entrevista a Rachel Johnson para a rádio LBC, na qual discutiram como o mês muçulmano do Ramadã estava sendo celebrado na Oxford Street de Londres, em vez da festa cristã da Páscoa.
Uma das consequências não intencionais (ou talvez intencionais) desse projeto foi a ascensão na Itália de Berlusconi, entre meados dos anos 1990 e o início dos anos 2000, dos chamados “ateus devotos” no lado direito do espectro ideológico.
É um projeto que evidentemente não alcançou seus objetivos, visto que o catolicismo italiano caminha, embora à sua maneira, para uma exculturação e uma desculturação semelhantes às de outros países europeus.
Agora as coisas parecem um pouco mais complexas na relação entre o Evangelho e a cultura. Abraçar claramente o cristianismo de forma instrumental, por razões culturais e políticas, é muitas vezes uma reação temerosa contra a diversificação das nossas sociedades, contra o domínio perdido do cristianismo em favor da presença crescente de outras identidades religiosas (especialmente o Islã) no mundo ocidental.
Não é de se surpreender que cada vez mais essas conversões “políticas” chegam à Europa vindas da extrema esquerda ou do secularismo militante.
Do ponto de vista teológico, professar um apego à cultura do cristianismo como uma defesa contra outras identidades religiosas e culturais é claramente problemático: primeiro, porque um cristianismo político-cultural instrumentaliza o legado produzido pelos fiéis em Jesus Cristo (fiéis em caminhos variados e sempre imperfeitos) para objetivos que não são os do Evangelho.
La Croix International
versão internacional de site católico francês
Richard Dawkins, biólogo evolucionista, etólogo e um dos ateus mais famosos do mundo, anunciou há apenas algumas semanas que é um cristão cultural: “Eu acho que, culturalmente, somos um país cristão. Eu me considero um cristão cultural”.
Ele disse isso em uma entrevista a Rachel Johnson para a rádio LBC, na qual discutiram como o mês muçulmano do Ramadã estava sendo celebrado na Oxford Street de Londres, em vez da festa cristã da Páscoa.
Dawkins, cujo ateísmo científico foi desmantelado de forma memorável pela crítica de Terry Eagleton, disse na mesma entrevista que reconhecia os benefícios da cultura cristã e gostava de “viver em um país culturalmente cristão”, mas ao mesmo tempo “não acredito em nenhuma palavra da fé cristã”.
Em termos ligeiramente diferentes, Ayaan Hirsi Ali, uma ex-muçulmana e agora ex-ateia, declarou recentemente que se converteu ao cristianismo: o anúncio de uma conversão política, como um “desejo de defender o legado da tradição judaico-cristã”.
Essa é uma das respostas possíveis ao colapso do cristianismo cultural na Europa e no Ocidente: não apenas em termos da incapacidade política das Igrejas de manterem um certo papel da religião na praça pública por meio da legislação, mas também em termos de “exculturação” (como a socióloga francesa da religião Danièle Hervieu-Léger a chamou há mais de duas décadas) e “desculturação” (como o cientista político francês Olivier Roy a chamou em tempos mais recentes).
Isso não é novo. Lembro-me da tentativa, em meados dos anos 1990, do cardeal Camillo Ruini (durante muitos anos presidente da Conferência Episcopal Italiana e vigário de João Paulo II para a Diocese de Roma), de lançar um “projeto cultural” para o catolicismo italiano.
Em termos ligeiramente diferentes, Ayaan Hirsi Ali, uma ex-muçulmana e agora ex-ateia, declarou recentemente que se converteu ao cristianismo: o anúncio de uma conversão política, como um “desejo de defender o legado da tradição judaico-cristã”.
Essa é uma das respostas possíveis ao colapso do cristianismo cultural na Europa e no Ocidente: não apenas em termos da incapacidade política das Igrejas de manterem um certo papel da religião na praça pública por meio da legislação, mas também em termos de “exculturação” (como a socióloga francesa da religião Danièle Hervieu-Léger a chamou há mais de duas décadas) e “desculturação” (como o cientista político francês Olivier Roy a chamou em tempos mais recentes).
Isso não é novo. Lembro-me da tentativa, em meados dos anos 1990, do cardeal Camillo Ruini (durante muitos anos presidente da Conferência Episcopal Italiana e vigário de João Paulo II para a Diocese de Roma), de lançar um “projeto cultural” para o catolicismo italiano.
Uma das consequências não intencionais (ou talvez intencionais) desse projeto foi a ascensão na Itália de Berlusconi, entre meados dos anos 1990 e o início dos anos 2000, dos chamados “ateus devotos” no lado direito do espectro ideológico.
É um projeto que evidentemente não alcançou seus objetivos, visto que o catolicismo italiano caminha, embora à sua maneira, para uma exculturação e uma desculturação semelhantes às de outros países europeus.
Relação entre Evangelho e cultura
Até poucos anos atrás, um certo tipo de católico progressista e liberal costumava se alegrar com o colapso do cristianismo cultural, que era visto como um fardo para a cristandade e um obstáculo para a transmissão de uma mensagem evangélica mais pura.Agora as coisas parecem um pouco mais complexas na relação entre o Evangelho e a cultura. Abraçar claramente o cristianismo de forma instrumental, por razões culturais e políticas, é muitas vezes uma reação temerosa contra a diversificação das nossas sociedades, contra o domínio perdido do cristianismo em favor da presença crescente de outras identidades religiosas (especialmente o Islã) no mundo ocidental.
Não é de se surpreender que cada vez mais essas conversões “políticas” chegam à Europa vindas da extrema esquerda ou do secularismo militante.
Do ponto de vista teológico, professar um apego à cultura do cristianismo como uma defesa contra outras identidades religiosas e culturais é claramente problemático: primeiro, porque um cristianismo político-cultural instrumentaliza o legado produzido pelos fiéis em Jesus Cristo (fiéis em caminhos variados e sempre imperfeitos) para objetivos que não são os do Evangelho.
Ele adota uma visão particularmente estreita da cultura cristã, que não reconhece a autoridade dos cristianismos não ocidentais (às vezes com tradições mais antigas do que a Igreja Católica Romana), porque não podem ser identificados com a cristandade europeia.
Deixar a mensagem cristã nas mãos desse tipo de “cristianismo cultural” acarreta muitas consequências e não apenas em termos de diálogo ecumênico e inter-religioso e de convivência civil nas nossas sociedades multirreligiosas, mas também porque impede uma interpretação correta do Evangelho, que não está a serviço de uma cultura específica, excluindo as outras.
Também não é de se surpreender, portanto, que essa nova onda de cristianismo cultural contenha uma teologia política que tanto a corrente dominante liberal-secular como os cristãos progressistas claramente não apreciam, porque é uma preparação ou já faz parte de uma guerra civilizacional.
Nas Igrejas do Ocidente, incluindo a Igreja Católica, existe outro tipo de cristianismo cultural que corre o risco de ser igualmente oportunista em relação ao Evangelho.
Deixar a mensagem cristã nas mãos desse tipo de “cristianismo cultural” acarreta muitas consequências e não apenas em termos de diálogo ecumênico e inter-religioso e de convivência civil nas nossas sociedades multirreligiosas, mas também porque impede uma interpretação correta do Evangelho, que não está a serviço de uma cultura específica, excluindo as outras.
Também não é de se surpreender, portanto, que essa nova onda de cristianismo cultural contenha uma teologia política que tanto a corrente dominante liberal-secular como os cristãos progressistas claramente não apreciam, porque é uma preparação ou já faz parte de uma guerra civilizacional.
Entendendo a “cultura”
Duas questões surgem aqui. A primeira diz respeito ao trabalho intelectual e acadêmico. Quais são as diferenças e as semelhanças entre esse tipo de “cristianismo cultural” da direita e as teologias políticas radical-progressistas da esquerda?Nas Igrejas do Ocidente, incluindo a Igreja Católica, existe outro tipo de cristianismo cultural que corre o risco de ser igualmente oportunista em relação ao Evangelho.
Correntes importantes da teologia política do século XXI em torno da raça e do gênero nos departamentos acadêmicos das universidades anglo-americanas são muitas vezes uma forma de apego cultural e de desenvolvimento da virada libertacionista do pensamento cristão. Mas muitas vezes sem nenhuma referência ao Evangelho de Jesus Cristo e à perspectiva da fé, na ausência de referências ao imaginário encarnacional-sacramental, à intencionalidade eclesial e às graças da Encarnação e da Ressurreição.
Esse tipo de cristianismo cultural progressista tem sido um convidado mais bem-vindo na teologia acadêmica no Ocidente. Resta saber se e como esse desafio dos “cristãos culturais” impactarão a teologia liberal-progressista que operacionaliza uma compreensão da “cultura” como uma porta de entrada para mais diversidade, inclusão e diálogo.
A segunda questão diz respeito à relação entre fé e cultura na Igreja de hoje. É o sintoma da nova semântica da “cultura”, de algo que se une silenciosamente nas experiências vividas para algo que se torna uma plataforma politicamente militante em defesa de uma homogeneidade perdida.
Mas devemos prestar atenção ao caráter intergeracional dessas conversões, que já não dizem respeito apenas aos idosos que sofrem de nostalgia, mas também a um certo número de jovens. Não é, como foi no início do período pós-Vaticano II, uma paixão arqueológica, à la Agatha Christie, pelo esplendor de uma época passada. Agora, é algo diferente.
De uma forma significativamente diferente de seus antecessores, o papa Francisco encarna um catolicismo não europeu, do “Sul global”, que reivindica a necessidade de um processo de libertação da cultura ocidental e de uma inculturação mais profunda nas tradições locais não ocidentais, a fim de ser mais católico.
Por outro lado, os “cristãos culturais” no Ocidente procuram o oposto: uma recuperação do legado cultural do cristianismo deixado pelos séculos passados — filosofia, literatura, artes — para preservar algum sentido de identidade coletiva. Esse choque de trajetórias é mais profundo do que a caracterização habitual, preguiçosa e largamente ocidental entre “liberais versus conservadores” em relação àquilo que está acontecendo no catolicismo hoje.
O problema da relação entre o cristianismo e a cultura ressurgiu neste tempo de desestabilização do sistema eclesiástico e teológico criado pelas Igrejas no Ocidente ao longo dos séculos.
Esse tipo de cristianismo cultural progressista tem sido um convidado mais bem-vindo na teologia acadêmica no Ocidente. Resta saber se e como esse desafio dos “cristãos culturais” impactarão a teologia liberal-progressista que operacionaliza uma compreensão da “cultura” como uma porta de entrada para mais diversidade, inclusão e diálogo.
A segunda questão diz respeito à relação entre fé e cultura na Igreja de hoje. É o sintoma da nova semântica da “cultura”, de algo que se une silenciosamente nas experiências vividas para algo que se torna uma plataforma politicamente militante em defesa de uma homogeneidade perdida.
Mas devemos prestar atenção ao caráter intergeracional dessas conversões, que já não dizem respeito apenas aos idosos que sofrem de nostalgia, mas também a um certo número de jovens. Não é, como foi no início do período pós-Vaticano II, uma paixão arqueológica, à la Agatha Christie, pelo esplendor de uma época passada. Agora, é algo diferente.
Tensões entre o Ocidente e o “resto”
De modo mais crucial, essa onda de “cristãos culturais” representa uma das tensões entre “o Ocidente e o resto” durante este pontificado.De uma forma significativamente diferente de seus antecessores, o papa Francisco encarna um catolicismo não europeu, do “Sul global”, que reivindica a necessidade de um processo de libertação da cultura ocidental e de uma inculturação mais profunda nas tradições locais não ocidentais, a fim de ser mais católico.
Por outro lado, os “cristãos culturais” no Ocidente procuram o oposto: uma recuperação do legado cultural do cristianismo deixado pelos séculos passados — filosofia, literatura, artes — para preservar algum sentido de identidade coletiva. Esse choque de trajetórias é mais profundo do que a caracterização habitual, preguiçosa e largamente ocidental entre “liberais versus conservadores” em relação àquilo que está acontecendo no catolicismo hoje.
O problema da relação entre o cristianismo e a cultura ressurgiu neste tempo de desestabilização do sistema eclesiástico e teológico criado pelas Igrejas no Ocidente ao longo dos séculos.
Teologicamente, o “cristianismo acristão” de Dawkins é a resposta errada para esse problema. Mas é também uma forma inconsciente de fazer a verdadeira pergunta que está no horizonte: o que significa, na Igreja globalizada de hoje, iniciar uma nova fase de inculturação no Ocidente já exculturado do cristianismo?
> Com tradução de Moisés Sbardelotto para IHU Online.
Comentários
DAWKINS SURPREENDE AO AFIRMAR QUE SE CONSIDERA "CRISTÃO LAICO"
https://www.paulopes.com.br/2014/06/dawkins-surpreende-ao-afirmar-que-se-considera-cristao-laico.html
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