Pular para o conteúdo principal

O riso nos torna humano

Para Sêneca, é mais humano rir da vida do que se arrepender, e quem ri da vida merece maior gratidão em relação àqueles que choram


Nolo Ruiz 
professor do departamento de estética e história da filosofia da Universidade de Sevilla 

The Conversation
plataforma de informação produzida por acadêmicos e jornalistas

Um dos grandes temas da filosofia é a questão para nós mesmos. À pergunta “o que nos torna humanos?”, uma longa tradição filosófica, que abrange toda a Antiguidade Ocidental até ao estudioso Isidoro de Sevilha (século VII), o seu brilhante epílogo, responde com a teoria antropofilosófica do homo risu capax, segundo o que a coisa mais singular sobre os seres humanos é a sua capacidade de rir.

Assim o explica o sevilhano em Etimologias, a sua obra-prima, onde afirma que “o homem é um animal racional, mortal, terrestre, bípede”, ao que acrescenta: “Por último, incorporamos o que lhe é exclusivo: a capacidade de rir, visto que o riso é característico apenas do homem.”

A teoria do homo risu capax na Antiguidade

Esta teoria tem origem filosófica em Pitágoras de Samos. Segundo o filósofo grego Jâmblico, para Pitágoras o riso é, “em comparação com outros seres vivos, típico do homem — alguns o definem como um ser propenso ao riso -”, visto que é a capacidade de rir que marca a “distinção e diferenciação.”


O filósofo sírio
Porfírio afirma em
Isagoge: “Ser capaz
de rir depende
apenas do homem"

No mesmo sentido, Aristóteles afirma em Partes dos Animais que “a razão pela qual apenas os seres humanos sentem cócegas não é apenas a magreza da sua pele, mas também porque o homem é o único animal capaz de rir”.

Por sua vez, o teólogo Clemente de Alexandria diz em O Pedagogo: “Não é porque o homem é um animal risonho que se deve rir de tudo”, aceitando o ser humano como risv capax

Segundo Porfírio, o homem é única [espécie], para todos e sempre, quanto ao homem poder rir, pois, embora nem sempre ria, diz-se, no entanto, que ele tem essa capacidade (…) inatamente.”

Da mesma forma, Agostinho de Hipona, em Sobre o Livre Arbítrio , sustenta que brincar e rir são “atos típicos do homem”, embora sejam duas de “suas perfeições mais baixas”.
Censura filosófica do riso

A capacidade de rir também foi pensada na Antiguidade do ponto de vista ético.

Entre os censores, destacam-se os próprios pitagóricos, segundo o historiador Diógenes Laércio em Vidas, opiniões e frases dos mais ilustres filósofos quando diz que uma das prescrições pitagóricas era “não se deixar dominar pelo riso”. 

Também o referido Jâmblico afirma que entre os mandamentos pitagóricos mais misteriosos se reza “não se entregue ao riso irresistível”, visto que o riso, para Pitágoras, é o “representante de todas as paixões”.

Platão, em A República, afirma: “É inaceitável apresentar homens de valor dominados pelo riso.” E Aristóteles, em Trouble, argumenta que “o riso é uma espécie de desordem e engano”.

A filosofia desenvolvida pelos Padres da Igreja também se posicionou contra o riso. Autores como Basílio de Cesaréia, Ambrósio de Milão ou João Crisóstomo, bem como Leandro de Sevilha e Agostinho de Hipona, atestam isso. Esse último, em Contra os Acadêmicos, diz que “não há nada mais humilhante que o riso”, e o primeiro, Leandro, fala em Sobre a instrução das virgens e o desprezo pelo mundo do “espetáculo denigredor do riso”.

Num ponto intermédio encontramos o filósofo judeu Fílon de Alexandria, que sustenta que “Deus, sem dúvida, é o criador do riso virtuoso” e que “o objetivo da sabedoria é a diversão e o riso, mas não aquele que é praticado de forma imprudente”, tolos, mas daqueles que já ficaram grisalhos, não só pela idade, mas também pelos bons reflexos.

Em defesa do riso

No terceiro grupo encontramos os filósofos que defendem o riso. Epicuro, nas Sentenças do Vaticano, afirma que “é preciso rir ao mesmo tempo que é preciso filosofar”. Isto é, o riso não só não deve ser censurado, mas é necessário como a racionalidade. A filosofia pode ser escrita a partir do humor, buscando o riso do leitor? Do ponto de vista epicurista, sim. Também tentei fazer isso em O Filósofo de Sevilha. Biografia hiperbólica de Santo Isidoro de Sevilha.

Cícero, por sua vez, em Sobre o Orador, afirma que o riso promove a boa disposição do público. Por um lado, provoca admiração pela sagacidade do orador, mostrando ser uma pessoa culta, educada e mundana, e, por outro, graças às piadas e ao riso, dissolvem-se situações desagradáveis ​​ou difíceis de diluir com argumentos.

Mas se há um defensor do riso na filosofia da Antiguidade, é Sêneca, que sustenta nas Epístolas Morais a Lucílio que é forte e capaz de triunfar diante da dor quem “não parava de rir, mesmo quando seus algozes, irritado com “esse mesmo fato, eles empregaram todos os recursos de sua crueldade contra ele.”

Portanto, o riso é tão eficaz na superação da dor quanto a razão: “A dor que foi superada pelo riso não será superada pela razão?” Assim, Sêneca recomenda em Sobre a Tranquilidade da Alma seguir mais o exemplo de Demócrito do que o de Heráclito, pois, se este último era conhecido por chorar, o primeiro era conhecido por rir, por sua atitude sorridente no fazer e no pensar. Para o autor, é mais humano rir da vida do que se arrepender, e quem ri da vida merece maior gratidão dos outros do que quem chora por isso.

Existem outros animais capazes de rir?

Embora nas últimas décadas tenham sido realizadas pesquisas que tentam demonstrar que o riso não é exclusivamente humano, mas também típico de outros animais, até agora apenas foram demonstrados comportamentos semelhantes ao riso, sem afirmar definitivamente que têm a mesma natureza e implicações.

Em todo caso, a história da filosofia mostra-nos que, seja ou não a capacidade mais característica e exclusiva da nossa espécie e aquela que nos define, o riso nos torna humanos. Muito humano.

Comentários

Post mais lidos nos últimos 7 dias

90 trechos da Bíblia que são exemplos de ódio e atrocidade

Veja 14 proibições das Testemunhas de Jeová a seus seguidores

Dawkins é criticado por ter 'esperança' de que Musk não seja tão estúpido como Trump

Tibetanos continuam se matando. E Dalai Lama não os detém

O Prêmio Nobel da Paz é "neutro" em relação às autoimolações Stephen Prothero, especialista em religião da Universidade de Boston (EUA), escreveu um artigo manifestando estranhamento com o fato de o Dalai Lama (foto) se manter neutro em relação às autoimolações de tibetanos em protesto pela ocupação chinesa do Tibete. Desde 16 de março de 2011, mais de 40 tibetanos se sacrificaram dessa dessa forma, e o Prêmio Nobel da Paz Dalai Lama nada fez para deter essa epidemia de autoimolações. A neutralidade, nesse caso, não é uma forma de conivência, uma aquiescência descompromissada? Covardia, até? A própria opinião internacional parece não se comover mais com esse festival de suicídios, esse desprezo incandescente pela vida. Nem sempre foi assim, lembrou Prothero. Em 1963, o mundo se comoveu com a foto do jornalista americano Malcolm Wilde Browne que mostra o monge vietnamita Thich Quang Duc colocando fogo em seu corpo em protesto contra a perseguição aos budistas pelo

Condenado por estupro, pastor Sardinha diz estar feliz na cadeia

Pastor foi condenado  a 21 anos de prisão “Estou vivendo o melhor momento de minha vida”, diz José Leonardo Sardinha (foto) no site da Igreja Assembleia de Deus Ministério Plenitude, seita evangélica da qual é o fundador. Em novembro de 2008 ele foi condenado a 21 anos de prisão em regime fechado por estupro e atentado violento ao pudor. Sua vítima foi uma adolescente que, com a família, frequentava os cultos da Plenitude. A jovem gostava de um dos filhos do pastor, mas o rapaz não queria saber dela. Sardinha então disse à adolescente que tinha tido um sonho divino: ela deveria ter relações sexuais com ele para conseguir o amor do filho, e a levou para o motel várias vezes. Mas a ‘profecia’ não se realizou. O Sardinha Jr. continuou não gostando da ingênua adolescente. No texto publicado no site, Sardinha se diz injustiçado pela justiça dos homens, mas em contrapartida, afirma, Deus lhe deu a oportunidade de levar a palavra Dele à prisão. Diz estar batizando muita gen

Proibido o livro do padre que liga a umbanda ao demônio

Padre Jonas Abib foi  acusado da prática de  intolerância religiosa O Ministério Público pediu e a Justiça da Bahia atendeu: o livro “Sim, Sim! Não, Não! Reflexões de Cura e Libertação”, do padre Jonas Abib (foto), terá de ser recolhido das livrarias por, nas palavras do promotor Almiro Sena, conter “afirmações inverídicas e preconceituosas à religião espírita e às religiões de matriz africana, como a umbanda e o candomblé, além de flagrante incitação à destruição e ao desrespeito aos seus objetos de culto”. O padre Abib é ligado à Renovação Carismática, uma das alas mais conservadoras da Igreja Católica. Ele é o fundador da comunidade Canção Nova, cuja editora publicou o livro “Sim, Sim!...”, que em 2007 vendeu cerca de 400 mil exemplares, ao preço de R$ 12,00 cada um, em média. Manuela Martinez, da Folha, reproduz um trecho do livro: "O demônio, dizem muitos, "não é nada criativo". (...) Ele, que no passado se escondia por trás dos ídolos, hoje se esconde no

Veja os 10 trechos mais cruéis da Bíblia

TJs perdem subsídios na Noruega por ostracismo a ex-fiéis. Duro golpe na intolerância religiosa

Profecias de fim do mundo

O Juízo Final, no afresco de Michangelo na Capela Sistina 2033 Quem previu -- Religiosos de várias épocas registraram que o Juízo Final ocorrerá 2033, quando a morte de cristo completará 2000. 2012 Quem previu – Religiosos e teóricos do apocalipse, estes com base no calendário maia, garantem que o dia do Juízo Final ocorrerá em dezembro, no dia 21. 2011 Quem previu – O pastor americano Harold Camping disse que, com base em seus cálculos, Cristo voltaria no dia 21 de maio, quando os puros seriam arrebatados e os maus iriam para o inferno. Alguns desastres naturais, como o terremoto seguido de tsunami no Japão, serviram para reforçar a profecia. O que ocorreu - O fundador do grupo evangélico da Family Radio disse estar "perplexo" com o fato de a sua profecia ter falhado. Ele virou motivo de piada em todo o mundo. Camping admitiu ter errado no cálculo e remarcou da data do fim do mundo, que será 21 de outubro de 2011. 1999 Quem previu – Diversas profecias

Santuário Nossa Senhora Aparecida fatura R$ 100 milhões por ano

Basílica atrai 10 milhões de fiéis anualmente O Santuário de Nossa Senhora de Aparecida é uma empresa da Igreja Católica – tem CNPJ (Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica) – que fatura R$ 100 milhões por ano. Tudo começou em 1717, quando três pescadores acharam uma imagem de Nossa Senhora no rio Paraíba do Sul, formando-se no local uma vila que se tornou na cidade de Aparecida, a 168 km de São Paulo. Em 1984, a CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) concedeu à nova basílica de Aparecida o status de santuário, que hoje é uma empresa em franca expansão, beneficiando-se do embalo da economia e do fortalecimento do poder aquisitivo da população dos extratos B e C. O produto dessa empresa é o “acolhimento”, disse o padre Darci José Nicioli, reitor do santuário, ao repórter Carlos Prieto, do jornal Valor Econômico. Para acolher cerca de 10 milhões de fiéis por ano, a empresa está investindo R$ 60 milhões na construção da Cidade do Romeiro, que será constituída por trê