O professor de história Ricardo Oliveira da Silva está lançando o seu terceiro livro sobre ateísmo. Trata-se do “Capítulos da História do Ateísmo” onde apresenta uma biografia de ateus que, em diferentes momentos, se sobressaíram na defesa da razão e da libertação da humanidade das alegorias dos deuses. Na entrevista abaixo, com perguntas e respostas feitas por escrito, Silva fala sobre as duas principais correntes do ateísmo — a humanista e a científica. Entre outros temas, ele também cita os ateus antirreligiosos, que vicejam na internet mas não são novidades porque estavam presentes na Revolução Francesa e na edificação da União Soviética. Ao final, o professor faz uma reflexão
Silva: Assim como em países europeus e nos Estados Unidos, no Brasil a vertente do ateísmo científico realça o conflito epistemológico entre ciência e religião e o ateísmo humanista realça a religião como criação humana e fonte de legitimação de estruturas de poder social e político. De forma preliminar, pelo que vejo na internet, me parece que no Brasil prepondera o ateísmo científico.
No compêndio você cita a Rose e a Sikivu. Qual o papel das mulheres no movimento ateísta atual? Por que elas são pouco citadas? Além do machismo, há algo mais?
Historicamente as mulheres receberam menos oportunidades para questionar dogmas religiosos ao serem confinadas em casa para cumprir o papel de mãe, esposa e dona de casa. Para isso, se construiu ao longo do tempo um discurso de fundo religioso e científico que retratou mulheres como detentoras de uma “natureza emotiva e submissa”, diferente da “natureza racional e ativa” do homem. Com base nisso, se criou uma narrativa de incompatibilidade no binômio mulher/ateísmo.
O papel das mulheres ateias no ativismo, tanto no passado como hoje, pelo que entendo, está em parte em questionar esses discursos e abordar, por exemplo, o sentido da construção patriarcal da figura de Deus como forma para legitimar opressões sobre mulheres.
A população brasileira está de fato cada vez mais evangélica. Em decorrência disso, tem havido na internet o surgimento de ateus que foram evangélicos, pastores, inclusive. Esses “novíssimos” ateus têm uma retórica marcadamente antirreligiosa, usando as inúmeras contradições da Bíblia. Eles chegam a pregar o ateísmo. Como você encaixaria esse novo fenômeno no movimento ateísta?
Esse é um fato interessante. São pessoas cuja vida foi muito impactada pela religião, muitas vezes de forma traumática, talvez percebendo que “tenham perdido tempo de suas vidas”, ou tenham sido “enganadas” e “ludibriadas” por igrejas e figuras religiosas. Quando se tornam ateias, isso pode desembocar numa atitude explosiva de combate ao universo religioso por meio de uma retórica agressiva. Mas isso não é novo, desde o século XVIII encontramos essa vertente antirreligiosa que passou a ser incluída como parte da história do ateísmo. Na Revolução Francesa, muitas igrejas e padres foram hostilizados e na antiga União Soviética.
Acredito que, em novas edições, o seu livro apresente outros nomes importantes, Christopher Hitchens e Drauzio Varella.
Sim, a meta é sempre abordar mais e mais as ideias e ativismo de pessoas ateias. Tratei de Hitchens no meu livro O Ateísmo no Brasil. Drauzio Varella já manifestou em diversas ocasiões sua posição ateia e merece um estudo. Aliás, na medida em que encontro fontes quero pesquisar cada vez mais as histórias de ateus e ateias do país. A história do ateísmo brasileiro ainda está encoberta por uma penumbra de desconhecimento e silêncio.
Richard Dawkins, proeminente ateu e uma das personalidades do seu livro, tem sido cancelado por entidades ateístas sob a acusação de transfobia, porque, para ele, só existem dois gêneros, homem e mulher. Dawkins é um conceituado biólogo, que preza, portanto, os cromossomos XX e XY, que definem biologicamente o masculino e o feminismo. Para você, quem está sendo intransigente? Dawkins ou movimentos ateístas?
Olha, na minha avaliação é pertinente uma crítica quando o único critério para falar sobre pessoas trans se resume a uma definição biológica de feminino e masculino. Esse tema não se reduz ao horizonte biológico, ainda que seja importante, mas é enriquecido pelas teorias nas ciências sociais e possui uma dimensão política que não pode ser negligenciada. Estamos falando também de relações de poder e luta por direitos. Sei que existem pessoas ateias que concordam com Dawkins e outras não. Neste debate eu não estou ao lado de Dawkins.
Você entende que o ateísmo não se esgota em si mesmo porque se trata de um movimento político e, portanto, acrescento, ele possui uma ambição de poder. O que esse movimento tem feito no Brasil e em outros países? O que ele poderá fazer? Os fatos, nesse caso, confirmam a premissa?
Acredito que existem múltiplas perspectivas para se pensar o ateísmo. Alguns preferem o debate teológico, outros, o científico, há o filosófico, existem diversas formas de conceber a arte sem viés religioso e, claro, há indivíduos e grupos que o pensam como elemento de construção de movimentos políticos. Isso implica em almejar exercer uma influência na sociedade e, portanto, há uma questão de poder.
> Mais sobre Ricardo de Oliveira da Silva
Foto: divulgação
![]() |
Silva mostra a capa do livro “Capítulos da História do Ateísmo” |
Paulopes: No seu novo livro, você apresenta o ateísmo humanista, citando como exemplos Ernestine Rose e Sikivu Hutchinson, e o ateísmo científico (Darwin, Russell e Dawkins). No Brasil, atualmente, como essas duas correntes atuam e se mesclam? Uma dela prepondera? Pela sua percepção, o ateu brasileiro é mais humanista ou científico?
Silva: Assim como em países europeus e nos Estados Unidos, no Brasil a vertente do ateísmo científico realça o conflito epistemológico entre ciência e religião e o ateísmo humanista realça a religião como criação humana e fonte de legitimação de estruturas de poder social e político. De forma preliminar, pelo que vejo na internet, me parece que no Brasil prepondera o ateísmo científico.
No compêndio você cita a Rose e a Sikivu. Qual o papel das mulheres no movimento ateísta atual? Por que elas são pouco citadas? Além do machismo, há algo mais?
Historicamente as mulheres receberam menos oportunidades para questionar dogmas religiosos ao serem confinadas em casa para cumprir o papel de mãe, esposa e dona de casa. Para isso, se construiu ao longo do tempo um discurso de fundo religioso e científico que retratou mulheres como detentoras de uma “natureza emotiva e submissa”, diferente da “natureza racional e ativa” do homem. Com base nisso, se criou uma narrativa de incompatibilidade no binômio mulher/ateísmo.
O papel das mulheres ateias no ativismo, tanto no passado como hoje, pelo que entendo, está em parte em questionar esses discursos e abordar, por exemplo, o sentido da construção patriarcal da figura de Deus como forma para legitimar opressões sobre mulheres.
A população brasileira está de fato cada vez mais evangélica. Em decorrência disso, tem havido na internet o surgimento de ateus que foram evangélicos, pastores, inclusive. Esses “novíssimos” ateus têm uma retórica marcadamente antirreligiosa, usando as inúmeras contradições da Bíblia. Eles chegam a pregar o ateísmo. Como você encaixaria esse novo fenômeno no movimento ateísta?
Esse é um fato interessante. São pessoas cuja vida foi muito impactada pela religião, muitas vezes de forma traumática, talvez percebendo que “tenham perdido tempo de suas vidas”, ou tenham sido “enganadas” e “ludibriadas” por igrejas e figuras religiosas. Quando se tornam ateias, isso pode desembocar numa atitude explosiva de combate ao universo religioso por meio de uma retórica agressiva. Mas isso não é novo, desde o século XVIII encontramos essa vertente antirreligiosa que passou a ser incluída como parte da história do ateísmo. Na Revolução Francesa, muitas igrejas e padres foram hostilizados e na antiga União Soviética.
Acredito que, em novas edições, o seu livro apresente outros nomes importantes, Christopher Hitchens e Drauzio Varella.
Sim, a meta é sempre abordar mais e mais as ideias e ativismo de pessoas ateias. Tratei de Hitchens no meu livro O Ateísmo no Brasil. Drauzio Varella já manifestou em diversas ocasiões sua posição ateia e merece um estudo. Aliás, na medida em que encontro fontes quero pesquisar cada vez mais as histórias de ateus e ateias do país. A história do ateísmo brasileiro ainda está encoberta por uma penumbra de desconhecimento e silêncio.
Richard Dawkins, proeminente ateu e uma das personalidades do seu livro, tem sido cancelado por entidades ateístas sob a acusação de transfobia, porque, para ele, só existem dois gêneros, homem e mulher. Dawkins é um conceituado biólogo, que preza, portanto, os cromossomos XX e XY, que definem biologicamente o masculino e o feminismo. Para você, quem está sendo intransigente? Dawkins ou movimentos ateístas?
Olha, na minha avaliação é pertinente uma crítica quando o único critério para falar sobre pessoas trans se resume a uma definição biológica de feminino e masculino. Esse tema não se reduz ao horizonte biológico, ainda que seja importante, mas é enriquecido pelas teorias nas ciências sociais e possui uma dimensão política que não pode ser negligenciada. Estamos falando também de relações de poder e luta por direitos. Sei que existem pessoas ateias que concordam com Dawkins e outras não. Neste debate eu não estou ao lado de Dawkins.
Você entende que o ateísmo não se esgota em si mesmo porque se trata de um movimento político e, portanto, acrescento, ele possui uma ambição de poder. O que esse movimento tem feito no Brasil e em outros países? O que ele poderá fazer? Os fatos, nesse caso, confirmam a premissa?
Acredito que existem múltiplas perspectivas para se pensar o ateísmo. Alguns preferem o debate teológico, outros, o científico, há o filosófico, existem diversas formas de conceber a arte sem viés religioso e, claro, há indivíduos e grupos que o pensam como elemento de construção de movimentos políticos. Isso implica em almejar exercer uma influência na sociedade e, portanto, há uma questão de poder.
O tema da laicidade é um exemplo disso. No Brasil, tivemos a tentativa de construir um movimento neste sentido alguns anos atrás. No entanto, por uma série de razões, ele se desestruturou.
Olhando para o caso do Brasil, que conheço um pouco mais, talvez um dos desafios para que pessoas e grupos consigam mais uma vez tentar construir um movimento político é pensar o ateísmo para além do que ele nega (Deus). O que se pode propor de positivo, não apenas para as pessoas ateias, mas para o conjunto da sociedade. Eis uma reflexão.
Olhando para o caso do Brasil, que conheço um pouco mais, talvez um dos desafios para que pessoas e grupos consigam mais uma vez tentar construir um movimento político é pensar o ateísmo para além do que ele nega (Deus). O que se pode propor de positivo, não apenas para as pessoas ateias, mas para o conjunto da sociedade. Eis uma reflexão.
Comentários
Postar um comentário