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Início do século XX. Nasce nos EUA o fundamentalismo religioso. E contamina o Brasil

Um dos pressupostos inquestionáveis desse movimento de intolerância é a inspiração verbal na Bíblia 


Anselmo Borges 
jornalista 

Religión Digital
portal espanhol que cobre principalmente o catolicismo

Há várias explicações para o fundamentalismo, que cultiva o pensamento único e a intolerância

É preciso perguntar: quem é o Homem, um ser finito, para considerar-se senhor do Fundamento? Ele não possui o Fundamento ou o Absoluto, é o Fundamento que o possui a ele.

De modo geral, quando se fala em fundamentalismo, é no fundamentalismo religioso que se pensa. Há, porém, outras formas de fundamentalismo: o fundamentalismo político, o fundamentalismo cultural, o fundamentalismo econômico, por exemplo. Joseph Stiglitz, Prêmio Nobel da Economia, referindo-se à política econômica seguida pelo FMI no quadro da globalização, fala de “fundamentalismo neoliberal”

Quando se refere o fundamentalismo religioso, pensa-se essencialmente no islamismo. Mas, de fato, as palavras “fundamentalismo” e “fundamentalista” nasceram nos Estados Unidos, nos princípios do século XX e no contexto do protestantismo. 


A intolerância do 
pensamento único 
com base bíblica
saltou dos Estados
Unidos para o 
Brasil e outros países

Para preservar e defender os pontos considerados fundamentais da fé cristã, protestantes evangélicos norte-americanos de várias denominações escreveram artigos teológicos que foram reunidos e publicados entre 1910 e 1915, em doze fascículos com o título The Fundamentals: a Testimony to Truth, numa edição de três milhões de exemplares.

Em 1919, foi criada a World’s Christian Fundamentals Association, na convicção de que a regeneração do protestantismo implicava o combate ao liberalismo teológico. 

Foi em 1920 que o termo passou à opinião pública por um artigo de Curtis Lee Laws, no qual se lia: “Sugerimos que aqueles que ainda continuam firmemente apegados aos grandes fundamentos (Fundamentals) e que estão decididos a combater a sério por esses fundamentos sejam chamados Fundamentalists”, devendo, portanto, o termo ser considerado “um elogio e não um insulto”.

Um dos fundamentos inquestionáveis era o da inspiração verbal da Bíblia, seguindo-se daí a sua infalibilidade e inerrância. 

O texto bíblico devia ser assumido à letra e a sua autoridade estendia-se não só ao domínio religioso mas a todos os campos do saber: científico, histórico, filosófico... 

Foi neste contexto que em 1925 teve lugar em Dayton o famoso “caso Scopes”: um jovem professor de biologia, John T. Scopes, foi julgado e condenado por ensinar aos alunos a teoria da evolução das espécies de Darwin. 

Esse debate à volta do ensino do evolucionismo e da narração bíblica da criação nas escolas continua ainda hoje nos Estados Unidos.

Seja qual for o juízo que se faça sobre a modernidade e a sua crise, é necessário reconhecer conquistas suas irrenunciáveis: precisamente a leitura não literal, mas histórico-crítica dos textos sagrados, a separação das Igrejas e do Estado, da religião e da política, os direitos humanos, a ciência e a razão crítica, a autonomia das realidades terrestres. 

Apesar das constantes tentações restauracionistas e até pró-fundamentalistas, são valores que também a Igreja Católica reconheceu no Concílio Vaticano II (1962–1965), superando, no essencial, os conflitos que durante mais de trezentos anos manteve com os tempos modernos.

Neste contexto e não desconhecendo que Maomé foi um profeta religioso, um chefe de Estado e um guerreiro à frente de um exército, impõe-se a necessidade de perguntar se também nos Estados muçulmanos são possíveis a separação da religião e do Estado.

Estão em questão a interpretação crítica do Alcorão, a autonomia das realidades temporais em relação à tutela religiosa, o respeito pela liberdade de consciência, de pensamento, de expressão, de reunião, de associação, o direito à crítica da religião, à mudança de religião e à não crença, a igualdade dos sexos e dos seus direitos, a distinção entre ética civil e ética religiosa.

Há várias explicações para o fundamentalismo, que cultiva o pensamento único e a intolerância. Sublinham-se três.

Quando se não suporta viver na perplexidade e na interrogação, surge a tentação de absolutizar as próprias crenças, excluindo e perseguindo quem as não partilha.
Em toda a História foi permanente a utilização da religião para fins que não são os seus: alcançar o poder, servir os próprios interesses econômicos, políticos, culturais, impor hegemonicamente o próprio domínio.

Em última análise, na base está uma determinada concepção de verdade, que se confunde com a posse do Fundamento. Mas, precisamente aqui, é preciso perguntar: quem é o Homem, um ser finito, para considerar-se senhor do Fundamento?

Ele não possui o Fundamento ou o Absoluto, é o Fundamento que o possui a ele. Isto não é relativismo, mas perspectivismo: vamos ao encontro da realidade sempre numa determinada perspectiva. 

Por isso, no domínio religioso, há que reconhecer que há mais verdade nas religiões todas do que numa só, e dessa verdade faz também parte a pergunta pelo ateísmo.

De qualquer modo, condições imprescindíveis para a paz são um Estado laico, não confessional, e a leitura não literal, mas histórico-crítica dos livros sagrados, nomeadamente a Bíblia e o Alcorão.

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